O Dilema das Redes
Quem
assiste ao documentário dificilmente fica indiferente.
Um dos assuntos mais falados atualmente é o documentário “O Dilema das Redes”, lançado
pelo Netflix. A obra tocou um nervo.
Quem assiste dificilmente fica
indiferente. Alguns saem indignados com as empresas de tecnologia, outros,
revoltados com o próprio documentário.
Uma das críticas que o documentário recebeu é
justamente passar a mensagem de que os problemas criados pelo Vale do Silício
só podem ser resolvidos por gente do próprio Vale do Silício. T
odos os
entrevistados estão intimamente ligados a ele. Essa posição ignora o fato de
que a internet se fragmentou há tempos e tornou-se objeto da disputa
geopolítica mais importante dos nossos tempos.
As recomendações ingênuas que o documentário faz de
“desligar as notificações do celular” ou “eixa-lo carregando fora do quarto”
soam ridículas perto do terremoto que a rede está atravessando.
A questão da internet e seu uso é hoje estrutural. Os lances da
disputa global têm muito mais impacto sobre a vida das pessoas conectadas do
que qualquer tentativa de mudança de hábitos no plano pessoal.
Outra
simplificação imperdoável é pegar uma família de classe média americana como
exemplo de uso da rede.
A
internet não é feita de pessoas como aquelas, que são minoria. É feita de
pessoas que lutam para se conectar e para quem a conectividade é um recurso
escasso.
É só
olhar a situação do Brasil, onde 70 milhões de pessoas estão desconectadas ou mal
conectadas à rede. Para muitas dessas pessoas, a pouca conexão
que têm é questão de sobrevivência.
O
documentário também não enfrenta as raízes que levaram a internet a se tornar o
que é hoje. Essa raiz é a dominância completa dos aspectos comerciais sobre a
rede.
Olhando
a história da internet, sua utopia foi justamente construir uma infraestrutura
de comunicação autônoma com relação ao capitalismo, ainda que inserida nele.
Nesse
sentido, a internet surgiu como um espaço multissetorial, em que setores como a
academia, a comunidade científica, o terceiro setor e outros setores estariam
em pé de igualdade com o setor privado.
Não
por acaso os endereços da rede receberam terminações como .org, .edu, .net e
assim por diante. Só que a utopia não durou. O setor privado ganhou a primazia
da rede. O .com triunfou.
Esse
destino não era inevitável. A rede já viveu ciclos de utopia e distopia. Antes
da primeira bolha da internet, a rede ainda utópica caminhava rapidamente para
a comercialização sem limites.
Há
um artigo de Hermano Vianna publicado nesta Folha,
em 1999, em que o antropólogo reclamava que a internet estava virando um
shopping center! (“Internet ou o atoleiro virtual de porcarias”).
Com
o estouro da bolha, no início dos anos 2000, essa parte comercial exacerbada da
rede implodiu. Isso abriu espaço para outra era utópica da rede, com o
surgimento dos blogs e da Wikipedia.
No
entanto, a comercialização da rede voltou de forma mais severa. Matou os blogs
e fez surgir muitos dos problemas que o documentário descreve.
O
que fazer para retomar os usos não comerciais da rede? Esperar por outra bolha?
Deixar o celular carregando fora do quarto?
Ronaldo
Lemos – advogado, diretor do Instituto de
Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Fonte:
coluna jornal FSP
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