A triste despedida das livrarias


Religiões prometem a verdade sobre o além, enquanto alguns livros despejam um novo universo


Livraria Leonardo da Vinci, no Rio -  

A casa da minha infância parecia-me interminável. Quadros e esculturas esparramavam-se pelas paredes e pelo chão. As pinturas dos amigos dos meus tios conviviam com surpresas em cada canto, da fotografia de um garoto segurando o bico de um ganso a um presépio de madeira que comovia pela brutalidade. O corredor e o escritório, por sua vez, eram dominados por incontáveis livros de cima a baixo. Havia um pouco de tudo, das tragédias gregas aos livros que perverteram a geração anterior, como os romances de Joyce e Dostoiévski.

Aqui e acolá, alguns escritores brasileiros, como Graciliano e Guimarães.

Criança, deitava-me no chão do corredor, acolhido no meio da tarde pelos livros desorganizadamente deitados nas prateleiras, preferindo os contos de Borges. Foi minha madrinha que me revelou o incrível universo paralelo das livrarias. Deu-me de presente, talvez aos 12 anos, crédito para adquirir livros na mágica Leonardo Da Vinci, no centro do Rio, e suas estantes intermináveis.

As livrarias tornaram-se o meu mosteiro. É para lá que vou depois de uma reunião incômoda ou qualquer outra razão que me tenha atravessado o dia. Escolher um livro é flertar uma amizade. Há a conversa de salão das orelhas e da contracapa, mas relações profundas requerem o convívio das páginas, muitas vezes decepcionante. Eventualmente, porém, somos iluminados por descobertas sublimes.

As religiões apenas prometem a verdade sobre o nosso cotidiano e o além, enquanto alguns livros despejam um novo universo. Dos criadores prefiro, desde a infância, aqueles que utilizam máquinas de escrever. Jovem adulto, achava que as igrejas iriam desaparecer oprimidas pela contagiante liberdade permitida aos livros e às escolhas individuais. Os diversos deuses e suas muitas certezas cansavam-me pela sua intolerância em meio à pretensa poesia dominada por mau português.

As minhas divindades eram Beckett e Tchekhov e os meus demônios incluíam Celine, cercados pela sátira paranoica de Pynchon ou pelo encanto de Bulgákov. A leitura irresponsável permite meu afeto por Vonnegut Jr., afinal as livrarias defendem, inclusive, a maior das ofensas, o prazer com a literatura de segunda.

Na minha sacristia pagã há Natsume Soseki e seus filhos japoneses melancólicos, em meio à prosa impecável de Coetzee e à imperfeita de Philip Roth. Há, sobretudo, a elegia de Machado à culpa interminável sobre o amor talvez destruído pelo ciúme doentio. O meu Adão há muito tem sido Dom Casmurro. Segundo os crentes, Deus pode muito, inclusive nos permitir assistir à nossa própria morte. Aos poucos, melancolicamente, vão-se as livrarias.

 

Marcos Lisboa - presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Fonte: coluna jornal FSP

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