Contadores brasileiros têm até o
final do ano para se tornarem especialistas em sustentabilidade.
Foi finalmente lançado o primeiro padrão global de reporte de
sustentabilidade, alinhado às normas de contabilidade da IFRS.
Há cerca de 530 mil contadores no Brasil, cerca de 200 mil
profissionais de finanças vinculados a médias e grandes empresas e algumas
centenas de especialistas em sustentabilidade corporativa.
Todos eles serão
diretamente impactados por um anúncio histórico feito esta semana ao qual
poucos prestaram atenção.
A Fundação IFRS, que é responsável pelas normas de contabilidade
praticadas em cerca de 140 países, incluindo no Brasil, lançou o primeiro
padrão global de reporte de sustentabilidade (IFRS S1 e IFRS S2).
Entrará em
vigor em 1 de janeiro de 2024. Os reguladores brasileiros já indicaram que irão
apoiar a iniciativa.
Por que é que isto é relevante?
O perfil de sustentabilidade de
um produto, projeto ou ativo financeiro precisa de ser comunicado ao mercado
com precisão e consistência para permitir comparabilidade e racionalidade nas
decisões de consumidores, investidores e entidades bancárias.
Porém, atualmente, existem mais
de 30 metodologias de reporte de sustentabilidade, mais de 100 agências de
rating ESG, mais de 50 reguladores nacionais com
orientações contrastantes, mais de uma dezena de ferramentas de identificação
de materialidade financeira (seleção das métricas ESG que têm mais impacto
financeiro) e milhares de métricas ESG –muitas delas pouco
relevantes do ponto de vista financeiro e matemático.
Desde a COP26 em Glasgow que as
expectativas eram muito altas relativamente à capacidade da Fundação IFRS de
arrumar o mercado global da sustentabilidade, por intermédio do lançamento de
regras universais de reporte de sustentabilidade.
O dia chegou.
Mas porque isto não é um tecnicismo, uma marolinha
administrativa? Todas as empresas são obrigadas a reportar dados financeiros.
No Brasil, desde 2016, as empresas cotadas são obrigadas a reportarem também
dados em sustentabilidade visto que o perfil ESG de uma empresa impacta o seu
perfil de risco.
As PMEs que vendem os seus produtos e serviços para as empresas
de maior porte, principalmente as europeias, também estão sendo forçadas a
reportarem o seu perfil ESG.
O novo padrão global de reporte de
sustentabilidade da IFRS está integralmente alinhado com as normas de
contabilidade da própria IFRS, como esperado, mas também com as normas de
contabilidade GAAP, muito usadas nos EUA.
Os próximos anos serão marcados por alterações estruturais de
comportamento. As empresas e as instituições financeiras terão de investir em
formação.
Os reguladores nacionais terão de se concentrar na absorção das novas
regras pelo mercado doméstico, incluindo do ponto de vista legal.
Os próximos
meses e anos serão de expressiva reconfiguração. Todos terão de aprender uma
nova linguagem para fazer negócios.
Atualmente, cerca de um terço de todos os ativos sob gestão são
investidos considerando também métricas ESG, para identificar risco e
oportunidades com mais precisão.
Mas os investidores sempre manifestaram
desconforto relativamente à falta de estandardização no mercado.
Corrigido este
problema, é possível que o volume de capital que integre métricas ESG cresça.
Apesar das boas notícias, o novo padrão global de reporte de
sustentabilidade da IFRS não é imune a desafios.
O mérito do novo padrão é identificar a fatia específica do
grande mundo da sustentabilidade corporativa e do desenvolvimento sustentável à
qual as empresas e investidores precisam prestar atenção com maior acuidade
visual.
O destaque é exclusivamente para o pedaço do bolo que afeta as
demonstrações financeiras e as informações financeiras da empresa.
À coluna, Aron Belinky, um dos mais reconhecidos consultores em
sustentabilidade no Brasil, reforça que "essa filtragem pode ser vista
como positiva, na medida em que atende diretamente os detentores de capital,
que poderão decidir com critérios mais amplos os negócios que irão
realizar".
Mas e o restante do bolo da sustentabilidade?
O conceito criado
nos anos 80 é muito mais amplo e aglutinador do que a mão cheia de indicadores
ESG que têm relevância financeira.
E se houver empresas que decidam contribuir para a mitigação de
alguns problemas ESG, mesmo que isso não se traduza em vantagens financeiras
diretas?
Belinky reforça: "sustentabilidade não combina com
simplismo e imediatismo, mas, infelizmente, as pressões de tempo e limitações
de recursos costumam estreitar fortemente o escopo e completude das análises
empresariais e financeiras."
Uma outra limitação diz respeito à questão do impacto (positivo
e negativo) na sociedade e no meio ambiente das transações financeiras.
A
legislação europeia (SFDR) obriga instituições financeiras a reportarem-no,
independentemente da relevância financeira destas externalidades.
Mas o novo
padrão de reporte da IFRS negligenciou esta questão.
"O fato de alguns impactos não serem hoje percebidos como
relevantes para os negócios não torna esses impactos menos importantes do ponto
de vista ético, político ou científico", afirma Belinky.
A adoção paulatina e global do novo padrão de reporte de
sustentabilidade da IFRS impactará o ofício dos contadores porque, em muitos
casos, serão eles que assumirão a responsabilidade de reportarem dados em
sustentabilidade, além dos financeiros.
Hoje eles sabem contabilizar a variação anual do Ebitda, mas no
futuro terão de aprender a calcular também a emissão de toneladas métricas de
CO2.
Se a automatização dos processos contabilísticos da década de 1950
permitiu que os velhos guarda-livros passassem a contadores, a sustentabilidade
possibilitará que os contadores se tornem cada vez mais consultores
financeiros.
RODRIGO TAVARES - professor catedrático convidado na NOVA School of Business and
Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico
Mundial, em 2017