Nada
virá para nos dar mais tempo livre; avanços só aumentam carga de trabalho.
Já
ouvi previsões equivocadas; como aquela, jamais.
Estávamos
no fim da década de 1960. No centro acadêmico da faculdade, um grupo de
intelectuais da USP discutia como lidar com o ócio no ano 2000, época em que a
tecnologia estaria tão avançada que as pessoas trabalhariam apenas duas ou três
horas por dia. Como evitar que se entregassem à bebida e à depressão?
Aconteceu
o oposto: os avanços tecnológicos vieram para aumentar a carga de trabalho.
No
início dos anos 1980, eu estava num hospital em Nova York quando chegou por fax
um relatório médico enviado da Califórnia. Fiquei abismado.
Assim
que voltei ao Brasil, comprei um aparelho. Custava os olhos da cara, mas valia.
Os resultados dos exames que eu solicitava eram enviados diretamente para minha
casa. Que maravilha, os pacientes não precisavam ir buscá-los no laboratório.
Um
dia, ao acordar, o tapete da sala havia desaparecido. Estava encoberto pelos
faxes que a maldita máquina vomitara sem trégua. Comecei a levantar mais cedo.
Depois,
apareceu o email. Sensacional. Aposentei o fax, tecnologia obsoleta —o email
resolveria meus problemas. Coisa mais civilizada, não gastava papel nem
precisava perder tempo com preâmbulos ao telefone. Era o fim do "tudo bem
com você, e as crianças? E o reumatismo da sua mãe? Sua irmã largou daquele
imprestável?". Bastava escrever, clicar no envio e estávamos conversados.
Na
euforia, não me ocorreu a possibilidade de que outros fizessem o mesmo. Em
pouco tempo a caixa postal ficou abarrotada. No período de trabalho, não
conseguia vencer a enxurrada de mensagens; mal recebia uma, entrava outra.
Quando dei por mim, os emails invadiam as horas dedicadas à família e ao sono.
Lembro
bem do dia em que uma paciente me trouxe um presente de Natal, embrulhado numa
caixa com um laço de fita. Pelo tamanho, achei tratar-se de um par de sapatos.
Era um telefone celular.
Naquela
época, os pacientes se comunicavam com os médicos por meio de uma central que
acionava o bip que carregávamos preso ao cinto da calça. Quando saíamos de
casa, não podíamos esquecer as fichas telefônicas. Se bipassem, tínhamos que
achar um orelhão, ligar para a central com papel e caneta na mão, prender com o
queixo o telefone ao ombro, anotar o número da chamada e repetir a operação
para falar com quem havia bipado. O perfume enjoativo impregnado no aparelho
ficava no rosto da gente pelo resto do dia. Um colega teve problemas com a
esposa ciumenta.
As
companhias telefônicas fizeram de tudo para reduzir as dimensões dos celulares,
de modo que coubessem no bolso, estratégia para deixá-los ao alcance da mão.
Passamos a receber chamadas a toda hora, em qualquer lugar, inclusive nos
instantes livres que ainda sobreviviam: no trânsito, no meio do jantar, na mesa
do bar com os amigos, na privacidade do banheiro. A onipresença do celular tem
o dom de criar tensão, mesmo quando ele não toca.
Naquela
altura, Satanás, inconformado com a demora para receber nos quintos do inferno
pecadores cada vez mais longevos, raciocinou: "Tem cabimento aguardar 80
anos para a chegada dos amaldiçoados, quando posso infernizá-los em
vida?".
E
assim, sob o comando de Lúcifer, o anjo da luz condenado ao fogo eterno por
desafiar os desígnios de Deus, desenvolveram uma tela para o celular, de longe
a mais diabólica das invenções humanas.
A
tela conseguiu hipnotizar multidões de mulheres, crianças e homens mantidos
online 24 horas. Antes, podíamos alegar não ter visto a mensagem enviada, por
estarmos longe do computador. A tela jogou por terra essa possibilidade.
Não
satisfeito, o Demônio criou o WhatsApp. Cinco minutos depois de enviar um
email, o inimigo manda um WhatsApp para cobrar a resposta. Desafetos mais
ansiosos executam as duas operações simultaneamente.
Para
enlouquecer ainda mais, há sempre um desocupado sádico que inclui você num
grupo. Se sair, vão dizer que ficou importante, que agora não liga para os
parentes nem para os amigos do passado. Você acorda, está lá o famigerado
gatinho numa paisagem cafona dando bom dia ao grupo.
Não se iluda com a tecnologia,
prezado leitor, graças a ela nós nos tornamos mais competitivos e eficientes no
trabalho. Nada virá para nos dar mais tempo livre, ao contrário, tudo o que
surgir será para aumentar nossa produtividade. Vai ficar pior. Para regozijo do
Coisa-Ruim.
Drauzio Varella - médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.
Fonte: coluna jornal FSP