Quando
questionadas por suas preferências, as pessoas querem parecer inteligentes.
“Todo mundo mente” é a tradução de uma frase
famosa do personagem Dr. House da série homônima. Ele dizia: “Everybody lies”.
E é também um livro singular com o mesmo nome, escrito pelo ex-engenheiro do
Google Seth Stephens-Davidowitz (HarperCollins, 2017).
Trata-se de um daqueles trabalhos escritos a partir de
pesquisa em cima do Big Data, essa gigantesca plataforma de dados, cada vez
mais processada por algoritmos sofisticadíssimos (“bots”, para os íntimos).
Davidowitz é um “data scientist” (cientista de dados).
A chamada “física social”, disciplina criada pelo também
“data scientist” do MIT Alex Pentland, autor de um clássico de 2014 na área,
“Social Physics”, se constitui numa ciência social a partir dos rastros
deixados por nós na rede. O “físico”, aqui, seria esse rastro que pode ser
organizado como qualquer outro dado concreto de uma “hard science” (“ciência
dura”, e não vaga, como as “humanas”).
Enquanto Pentland é um claro “integrado” à ideia de que
isso tudo fará o mundo melhor, Davidowitz é mais dialético na sua abordagem.
Ricardo Cammarota
A ideia central do livro é que “everybody lies”. E a
razão desta mentira generalizada é que queremos parecer melhor do que somos no
Face (nada que santo Agostinho, vivendo entre os séculos 4 e 5, não soubesse,
sem o suporte, claro, da “data science” pra provar). A outra razão da mentira é
o marketing do bem, que resolveu construir uma grande mentira a serviço da ideia
de que o bem é algo que se cria numa start-up cheia de millennials livres do
mal.
A comparação entre, por exemplo, o que se posta no Face
(fruto de nossa intenção de parecer ótimos, felizes, inteligentes e engajados)
e o material que, de fato, “googamos”, em busca de respostas ou, pelo menos, de
mais dados sobre o tema que nos interessa, revela que todos mentimos. Os dois
conteúdos não batem.
Como alguém, por exemplo, que diz que o marido é ótimo e
a ama apaixonadamente no Face, pode, no Google, se perguntar tanto “como saber
se meu marido é gay?” ou “o que fazer se meu marido não quer fazer sexo
comigo?”. Sim, essas são duas das maiores questões que atormentam as mulheres.
O homens, por sua vez, postam que estão “evoluídos”, principalmente os mais
jovens, mas continuam atormentados por questões como “ela está tendo um caso?”
ou “como aumentar meu pênis?”.
Fala-se muito de empoderamento feminino, e as mulheres
mais jovens ficam cada vez mais fálicas (e sozinhas, diante de homens jovens
amedrontados). Mas, se olharmos para as buscas delas no Google, o que vemos é o
desejo de ver material erótico em que mulheres são violentadas, humilhadas,
tratadas como vadias e similares. Enquanto a histeria do assédio toma conta de
Hollywood e do mundo da mídia, muitas mulheres ficam vendo vídeos em que
mulheres são assediadas e acabam gozando.
A Netflix aprendeu uma dura lição. Quando buscou fazer
os menus de seus consumidores a partir da lista que estes informavam, jogou
dinheiro no lixo. Quando questionadas por suas preferências, as pessoas
elencavam filmes inteligentes, europeus, iranianos, alternativos,
documentários. Mas, na verdade, ninguém usava o menu.
Enquanto projetavam um perfil de amantes de filmes
inteligentes, na verdade, viam filmes de terror, crimes, romances, comédias
idiotas e super-heróis bobos. A Netflix resolveu então perguntar ao algoritmo,
nosso oráculo. O algoritmo sabe de mim mais do que eu sei de mim mesmo. Outra
vez, santo Agostinho. Só que, para este, era Deus quem sabia mais de mim do que
eu sabia de mim mesmo.
E aí chegou ao que precisava. Nós mentimos, o algoritmo
não. Rastreando os tipos de filmes realmente vistos, a Netflix chegou à
solução: não pergunte para as pessoas do que elas gostam, porque elas mentem
(provavelmente, para si mesmas), olhe para o que elas fazem de fato. De novo,
nada que a filosofia moral já não soubesse.
Quer mais? Apesar de as pessoas afirmarem que são contra
julgar os outros (está na moda amar todo mundo), na verdade, o que os rastros
dizem é que muita gente adora julgar os amigos, os colegas de trabalho, e falar
mal deles.
Apesar de dizerem que querem ser informadas e, por isso,
veem noticias de manhã, na verdade, as pessoas adoram acompanhar fofocas sobre
celebridades transando fora do casamento.
Apesar
de se condenar, veementemente, a violência, as pessoas adoram assistir a filmes
de caras ricos fazendo sexo violento com alunas da faculdade. O mundo nunca foi
uma farsa maior do que é hoje.
Luiz
Felipe Pondé - escritor, filósofo e ensaísta.
Doutor em filosofia pela USP, é professor da PUC e da Faap.
Fonte:
coluna jornal FSP