Na física, Golias se dá melhor que Davi: átomos cedem lugar a astros


O jornalista americano Malcolm Gladwell, no livro "Davi e Golias – A Arte de Enfrentar Gigantes" (ed. Sextante), argumenta  que Golias nunca teve chance contra Davi: o gigante era bastante míope, e as armas de seu oponente eram mais eficazes.

Até pouquíssimo tempo atrás, o roteiro de Gladwell servia de metáfora para a relação entre a física do muito grande —astros e galáxias— e a física do muito pequeno —átomos epartículas elementares. Até pouquíssimo tempo atrás, a astronomia era (relativamente) míope, e a física de partículas tinha instrumentos mais eficazes.

Durante os últimos 70 anos, o estudo de partículas elementares comandou o interesse e os recursos de físicos ao redor do planeta. Nesse período, o mundo microscópico nos forneceu inúmeras surpresas, descobertas e avanços teóricos, nos tornando ainda mais donos do nosso mundo. Descobrimos forças (e bombas) nucleares, novos processos atômicos e até a internet.

Claro que o mundo megascópico continuava fascinando a humanidade durante estas décadas. Mas, desde Einstein, avanços teóricos na cosmologia e na gravitação moviam-se glacialmente em comparação aos da física de partículas.


Concurso britânico premia melhores fotos de astronomia do ano

Com colisores extremamente avançados —praticamente "fundas" gigantescas arremessando partículas umas contra as outras e colhendo seus estilhaços na esperança de determinar o que havia lá dentro—, os físicos do microscópico tinham grande controle sobre a própria pesquisa.

Trocavam partículas, aumentavam energias, giravam o ângulo de colisão; formulavam, testavam e descartavam teorias, sempre guiados pela abundância de experimentos disponíveis.

Assim seus laboratórios facilmente ofuscavam as estrelas dos astrônomos; não se controla a rotação de um buraco negro, o ângulo de um quasar ou o timing de uma supernova. Cerceados pela natureza aleatória de seu objeto de estudo, os físicos do macroscópico renovavam suas teorias somente a cada Newton e a cada Einstein. Davi era ágil, Golias, lerdo.

Desde 2015, porém, essa figura está mudando. A comunidade da física de partículas vive um momento difícil. Necessitando de energias crescentes para sondar as profundezas do mundo microscópico, apostou grande parte de suas fichas numa enorme extensão do colisor de partículas do Cern (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares): o LHC (Large Hadron Collider), a maior funda já construída pelo homem.

Pleiteando fundos necessários à realização do LHC, esses físicos só não prometeram a alma porque não são dualistas (em sua maioria). Em vez disso, alardearam possíveis descobertas, indo de superpartículas (parceiras mais maciças das partículas elementares que conhecemos) a áxions (possíveis constituintes de matéria escura).


O acelerador de partículas do Cern, na Suíça  

Mas, infelizmente, o LHC está hoje no que muitos chamam de “cenário pesadelo” —não descobriu nada além de uma partícula já prevista havia 50 anos (o Higgs, responsável por "dar massa" às outras partículas), e isso em 2012.

Com esse deserto de descobertas, sonhos de uma era dourada iniciada pelas novas partículas ficam cada vez mais distantes. No momento, físicos disputam ferozmente recursos para construir aceleradores ainda maiores e melhores, na esperança de que as promessas do LHC vinguem na próxima geração de equipamentos.

Do outro lado, físicos da gravitação inauguraram o incrível Ligo (sigla para Laser Interferometer Gravitational Observatory), um observatório diferente. Não tem lentes enormes nem aponta para o céu, mas, usando lasers e espelhos, é capaz de determinar minúsculas variações no campo gravitacional. Consegue detectar um deslocamento de seus espelhos na ordem de um milésimo do comprimento de um átomo.

Essa sensibilidade nos permitiu ver o que também só era sonhado: ondas da forçada gravidade, previstas por Einstein em 1919. Talvez essa observação represente o maior avanço da ciência dos últimos cem anos.



Colisão de estrelas de nêutrons que foi observado por ondas gravitacionais na Terra  

A descoberta de ondas gravitacionais, ao final de 2015, é mais do que uma confirmação da teoria da relatividade. Com ela abriram-se novos céus para a astronomia. Há novas perguntas, novas respostas e novos mistérios, não só para a gravitação, mas para toda a física. Mas o que mudou?

Até recentemente, para rastrear astros e mapear o céu, astrônomos usavam ondas do campo eletromagnético. Ondas desse tipo são provocadas por processos variados, por exemplo, em reações nucleares dentro de uma estrela. Mas planetas, pó sideral e outros corpos celestes as absorvem, obstruindo a sua propagação até nós.

Por causa disso, a astronomia registrava com dificuldade eventos muito longínquos e velados. E são estes os eventos mais interessantes para o aprimoramento de uma teoria; os centros de muitas galáxias, por exemplo, contêm buracos negros supermassivos, onde nossas hipóteses são testadas em condições extremas.

Mas estes mesmos eventos são também encobertos por fornalhas turbulentas que ofuscam nossa sondagem por ondas eletromagnéticas. Golias era míope.

As ondas gravitacionais, como o nome sugere, atuam em outro campo de força: o gravitacional. Constituídas por distorções no próprio tecido do espaço-tempo, estas ondas são produzidas em outros processos —colisões de buracos negros e de estrelas— e passam praticamente incólumes através de obstáculos ordinários.

Combinando os dados destes sinais gravitacionais com os dos eletromagnéticos, recentemente demos luz à "astronomia por multimensageiros". Ficou mais fácil enxergar o Universo por completo, e, assim, fica mais fácil compreendê-lo por completo.

Com esses avanços, após quase 70 anos, parte dos recursos da física de partículas está escoando para a gravitação. Até meados de 2030, a inauguração de cinco observatórios de ondas gravitacionais está planejada, com o primeiro —o japonês Kagra— ainda para 2018.

Nas próximas décadas, a cosmologia promete ser a protagonista das fronteiras da física. Prepare-se para ouvir menos sobre Higgs e quarks, e mais sobre buracos negros e estrelas de nêutrons.

É como se a cosmologia até hoje só tocasse o Universo, tateando suas feições para tentar formar uma imagem. Agora, ela ganhou um novo sentido. Ela enxerga o que era antes invisível. Pois então, Davi, tome cuidado: Golias encontrou os seus óculos.

Henrique Gomes - físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

Fonte: artigo jornal FSP

 

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