Entre os muitos papéis que a China tem desempenhado,
alguns são inconspícuos. O país vem se tornando o celeiro da imaginação (já escrevi aqui que a melhor ficção científica hoje échinesa). Isso é importante porque, como dizia Jules Michelet,
"cada época sonha com a que virá a seguir, criando-a primeiro em
sonhos". Quem sonha melhor é também mais capaz de projetar o futuro.
Mais do que o sonho, vem também de um pensador chinês
uma das visões mais originais e poderosas sobre como pensar a tecnologia a
partir de uma perspectiva filosófica. O jovem Yuk Hui lançou há pouco um dos
livros mais importantes sobre como pensar a tecnologia, chamado "A Questão
da Tecnologia na China: um Ensaio sobre Cosmotécnica".
Nas últimas décadas, o avanço tecnológico foi visto com
otimismo: uma força universal, objetiva e pouco problematizada, capaz de fazer
avançar nossa capacidade de agir coletivamente, levando ao progresso da
cultura, da democracia, da política ou do pensamento científico.
No entanto, as coisas não foram bem assim, e há uma
guinada de percepção em curso, bem detectada como premissa por Yuk Hui. A
tecnologia vem se mostrando uma força de atomização, que dissolve o coletivo em
individualidades cada vez menores e particulares.
A fim de enxergar a tecnologia para além das suas
próprias regras, Yuk invoca a busca por uma nova cosmologia, o que permitiria a
construção de um olhar "de fora" que coloque a técnica em seu devido
lugar, qual seja, de apenas mais um dos elementos da existência. Essa ideia de
"cosmotécnica" é libertadora.
O Ocidente vem caminhando em direção a um tecnocentrismo.
Que se revela em ideias como a "singularidade", vendida como evento
inevitável para o qual todos devemos nos preparar. Ou, na visão de pensadores
como Danny Hillis, para quem o Iluminismo
(Englightment) teria sido substituído pelo que ele chamada de Entrelaçamento
(Entanglement). Nesse "Entrelaçamento" estaria surgindo uma nova
natureza técnica incompreensível para a humanidade -exemplificada pela
inteligência artificial- que deslocaria o ser humano para um papel secundário.
Em outras palavras, enquanto o tecnocentrismo prega uma
capitulação diante da técnica (tal como a no caso da singularidade ou do
entrelaçamento), a articulação de Yuk Hui é no sentido oposto, de fuga desse
tipo de determinismo.
Faz sentido. As múltiplas crises provocadas pela
tecnologia (do "fake news" à alta da desigualdade) demandam
pensamento novo sobre nossa relação com ela. Nas palavras da cientista americana
Dana Meadows, o lugar mais eficaz para interferir em um sistema é o "poder
de transcender paradigmas". Todas as outras estratégias -como mudança nos
objetivos do sistema, nas regras que se aplicam a ele, sua estrutura ou
evolução- são menos relevantes.
Sem um pensamento novo que permita sonhar além da
tecnologia, a capitulação torna-se mesmo inevitável. Assim como a lua de Campos
de Carvalho, o melhor pensamento crítico à tecnologia também vem da Ásia.
Ronaldo Lemos: advogado, diretor do Instituto de
Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org). Mestre em direito por
Harvard. Pesquisador e representante do MIT Media Lab no Brasil.