O buraco mágico na cabeça desde
a Idade do Ferro
Crânio em sítio arqueológico na China revela procedimento cirúrgico
feito após a morte.
Durante uma necropsia em 1657, o médico Johannes Wepfer
encontrou um grande cisto repleto de sangue entre o cérebro e a meninge do
cadáver.
Admitia-se que um "derrame apoplético" ditara o destino do
corpo examinado. Contudo, das mãos de Wepfer temos um marco histórico: a
primeira descrição objetiva de um hematoma subdural crônico, a real causa da
morte.
Uma condição causada por trauma e marcada por sintomas tardios e
progressivos, iniciados depois de um período latente muito variável, de dias a
meses.
Hematomas
subdurais crônicos mataram e matam muitas pessoas. Já até se especula que
Mozart (1756-1791) pode ter sido uma das vítimas. Mas a senhora Antonieta, de
70 anos, sobreviveu a essa doença.
Ela havia batido a cabeça algumas vezes, na
portinhola de um armarinho, aquela armadilha doméstica situada acima da pia do
banheiro.
Sem muito aviso, ela passou a ter falhas importantes de memória,
dificuldade para falar, muita apatia e, por fraqueza, passou a arrastar a perna
direita. As alterações eram sutis no início, mas pioravam dia a dia.
Uma
tomografia revelou a indiscreta causa de seus problemas: o volumoso sangramento
característico de hematoma subdural crônico. Ela provavelmente morreria caso
não tivesse sido entregue a uma
Arqueólogos
contam a nossa história examinando as sobras do tempo, como estas são. Um
crânio de um homem jovem, morto na Idade do Ferro, toma parte deste conto.
Descoberto na China, em um sítio arqueológico em Xinjiang, o resto mortal está
marcado por sinais de violência, provavelmente fatais.
Entretanto,
de especial, existem buracos produzidos cuidadosamente nos ossos e, em volta,
não há sinais de cicatrização. Esses achados acusam um procedimento cirúrgico
realizado após a morte ou nos momentos finais da vida.
Se
foi praticada nos últimos momentos, a intervenção foi uma ação desesperada para
salvar a vida da pessoa em agonia final.
Porém, a maneira da perfuração,
naquela particular área craniana, teria afligido vasos sanguíneos importantes
e, por consequência, terminado de liquidar o fiapo vital. Talvez o procedimento
tenha sido praticado após a morte, em um rito de funeral.
Ou, quem sabe, numa
tentativa de ressuscitar o recém-falecido jovem.
A
trepanação, o processo que cria orifícios em crânios, é um dos atos cirúrgicos
mais antigos. Acontecia na pré-história, em todos os continentes. Foi praticado
por diferentes civilizações, que não se encontraram e não se influenciaram.
Nos
tempos remotos, o procedimento foi utilizado para atender a algumas propostas
terapêuticas, cujo sentido ainda remanesce para a medicina dos tempos de agora
como tratamento de complicações de traumas e de infecções.
A trepanação foi
repetida ao longo das eras e, quando aplicada à senhora Antonieta, curou-a. É o
tratamento que soluciona os hematomas subdurais.
Mas
havia mais funções para a prática. Para os nossos antepassados, misticismo e
magia estavam ao lado dos primordiais instrumentos cirúrgicos. O buraco no
crânio serviria para esvaziar a cabeça de espíritos ruins, o objetivo era
eliminar possessões.
Também se imaginava que algum material nocivo, em vapores
fuliginosos, sairia para o exterior, seria o tratamento proposto contra doenças
psiquiátricas e cefaleias.
Enquanto essas extravagâncias eram praticadas e
sustentadas por teorias esdrúxulas, alguém teve azar. O procedimento não foi
aplicado para curar o "derrame cerebral apoplético", omissão que
produziu um corpo para dr. Johannes Wepfer necropsiar.
Atualmente,
a trepanação em centros cirúrgicos é um procedimento simples que impede mortes.
Porém, misticismo e magia continuam no ideário de cura, ainda que formatados
por um raciocínio secular.
Na
década de 1960, o desejo de aumentar o poder mental tornou-se justificativa
para a trepanação.
Alguns gurus ocidentais argumentaram que o fechamento das
suturas cranianas na infância inibem pulsações cerebrais e reduziriam nossas
capacidades para as percepções intensas e diminuiriam nossa criatividade.
A
perfuração de um buraquinho nos ossos cranianos, portanto, restauraria a
intensidade do pulso, a restabelecer a vigorosa irrigação cerebral.
Como
consequência, melhores pensamentos e mais criatividade.
John
Lennon cogitou se submeter ao processo, como forma de evoluir em acordo a
métodos ancestrais. Mais uma entrega de solução simples embrulhada em papéis de
cilada.
Parece
que sempre estamos em meio a duas pressões: uma que nos move à novidade e à
descoberta; outra que nos faz retomar ao primítico.
LUCIANO MAGALHÃES MELO - médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos,
seus dilemas e as doenças que o afetam.