“O que mais dá raiva é levar o
negócio a sério e ver que tem gente andando na rua como se nada estivesse acontecendo. Essa
é uma das coisas que mais me tira do sério”, desabafa José Henrique Silva,
40.
O chef de cozinha atua no setor de
festas e eventos e está sem trabalhar desde o início da quarentena causada pela pandemia do novo coronavírus.
“Percebi já nas duas primeiras
semanas de isolamento social que meu humor mudou
completamente. Ficava irritado com qualquer coisa, agora estou um pouco mais
calmo. Mas no começo foi bem difícil”, diz.
José Henrique conta que chegou a
brigar com vizinhos que se reuniram com familiares em casa. Ele
mora em Cotia (a 31 km de São Paulo), em uma vila residencial com seis casas,
onde os moradores dividem as áreas comuns.
“Meus vizinhos são evangélicos e,
segundo eles, decidiram fazer uma oração em família. Mas trouxeram cachorro,
gato, periquito, a mãe, a sogra, a casa encheu de gente”, diz.
“O pior é que essa vizinha é enfermeira
e trabalha em pronto-socorro, ou seja, ela sabe muito bem os cuidados que
devemos ter. Mesmo assim, passou por cima de tudo. Porque ela não desrespeitou
só a mim, ela desrespeitou a todos que moram aqui.”
A psicóloga Fabíola Freire Saraiva
de Melo, coordenadora do curso de psicologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo), explica que a raiva está associada com a
sensação de impotência.
“Toda vez que ficamos impotentes
diante de alguma situação, sentimos raiva. É como uma criança que se sente
frustada e tem um ataque de birra. É uma força, um sentimento muito forte que
toma conta da pessoa, uma sensação de descontrole”, afirma Fabíola.
Para a psicóloga, a
imprevisibilidade causada pela pandemia do novo coronavírus pode aumentar a irritabilidade
e a raiva nas pessoas.
“Numa semana fala-se em “lockdown”, na outra em reabertura. Além disso, estamos sendo privados
de ter contato com quem amamos, de vivenciar o luto, muitos estão sem poder trabalhar“, observa.
É o que tem enfrentado a
aposentada Solange Ribeiro, 63. Ela mora no Rio de Janeiro e desde março não
pode ver as filhas Stephanie, médica, e Thalita, jornalista, e o neto Théo.
“Quando começou o corona, eu estava
de malas prontas para viajar para o interior de São Paulo visitar minha
família. Sempre via minhas filhas e meu neto, que moram no Rio também”, conta.
“Na época, achei melhor cancelar a viagem e esperar mais uns 15 dias. Só que
desses 15 dias, estou até hoje aqui.”
A raiva, para Solange, vem da
incerteza de não saber o que vai acontecer nos próximos dias.
“Aqui, no Rio, parece que nunca
termina o pico da doença. A curva está sempre subindo.
Então isso está deixando todo mundo com raiva, não só eu, mas também meus
amigos, principalmente o pessoal da mesma faixa etária. Tenho amigas que estão
depressivas, longe da família. São pessoas ativas, que gostam de sair, sem
depender de ninguém e, de repente, agora têm que depender dos filhos para
trazer alguma coisa, ou de amigos”, relata.
“Minhas filhas não podem vir aqui,
porque uma é médica e a outra é repórter de rua. O Théo está com 1 ano e 4
meses. Vejo eles pela janela, pelo vídeo todos os dias, aí fico matando a
saudade. E fico sozinha, não tem ninguém na minha casa. Fico conversando
com quem? Com o Buddy, meu cachorro. Vendo live, vendo filme, ouvindo música,
mas tem uma hora que tudo cansa.”
Desde o início da pandemia na capital
fluminense, Solange tem tomado todos os cuidados contra o coronavírus. Há
um mês ela perdeu uma amiga para a Covid-19.
“É angustiante, porque vou da
cozinha para a sala, da sala para o quarto. Nos últimos dias comecei a descer
com o Buddy para ele passear, mas sempre com máscara, aquele cuidado todo. Tá
muito complicado aqui no Rio com esse abre e fecha. Cada hora o governo fala
uma coisa. Isso vai gerando uma raiva, uma angústia. Porque você cria uma expectativa que
vai acontecer, que vai terminar tudo isso e nada. E a saudade da família é
muito grande.”
O psiquiatra Diego Tavares,
pesquisador do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (FMUSP), afirma que o cenário atual favorece as
alterações de humor.
“A pandemia é um prato cheio para
tudo isso. É uma situação estressante, abrupta e inesperada”, diz.
Apesar de o sentimento de raiva ser
comum nesse contexto de imprevisibilidade, ele pode estar associado a doenças
como depressão e transtorno bipolar se for constante.
Nesses casos, muitos confundem o sintoma como se fosse um traço de
personalidade.
“A irritabilidade do
deprimido é mais introspectiva, não tem agressividade. A pessoa fica
ranzinza, reclamona, pessimista. É mais inócua para que está perto”, afirma.
“Já na bipolaridade, a irritabilidade é mais agressiva, explosiva e com
tendência a brigas.”
Diego afirma que a irritabilidade
também pode aparecer em pacientes com transtorno de ansiedade. Nesse caso, está
associada ao excesso de preocupação e medo.
Os sintomas mais comuns da raiva
são o tom de voz alterado, a falta de paciência e o hábito de bufar ou suspirar
intensamente.
“À medida que o indivíduo fica mais
nervoso, ele vai perdendo o filtro e começa a brigar com a família, com os
colegas de trabalho e mesmo com desconhecidos na rua ou no trânsito”, diz.
Para quem convive com uma pessoa
que está nervosa, o psiquiatra dá um conselho. “Nunca pergunte se a pessoa está
com raiva. É fácil identificar que ela está. O melhor é sair de perto, a
pessoa irritada precisa ficar afastada para se acalmar.”
Se a irritabilidade é um sintoma
constante e começar a atrapalhar o relacionamento com outras pessoas, é
importante procurar ajuda de um psicólogo ou de um psiquiatra, recomenda o
médico.
José Henrique, o chef de cozinha,
conta que começou a fazer terapia online e meditação durante a quarentena. “Eu já
tinha feito terapia há muito tempo, mas parei. Era algo que queria muito voltar
a fazer e tive oportunidade agora.”
Para desestressar, ele diz que
também redecorou a casa. “Pintei, troquei os móveis,
comprei plantas. Cozinhei muito também, mas estou estudando decoração, saindo
um pouco do foco da cozinha”, diz.
Solange também tem cozinhado
e mudado o ambiente onde está confinada. “Para aliviar, tenho feito
comida. Faço bolo, faço pão caseiro. Agora vou pintar o apartamento. Já lixei
as paredes e vou começar a pintar”, conta.
A psicóloga Fabíola ressalta a
importância de mudar a perspectiva nesse momento para aprender a lidar com a
raiva e com a frustração.
“Enquanto a pessoa está se
debatendo de raiva, ela não consegue aceitar essa situação que todos nós
estamos enfrentando. É preciso ressignificar essa experiência e aprender com
ela”, explica.
“Não é brincar de ser poliana,
de enxergar um lado bom nisso. Mas a gente precisa usar a
criatividade e encontrar formas de lidar com a realidade”, observa.
Silvia Haidar – coluna jornal FSP