Somos
tão bons em burocracia que ela consegue ser recriada até no meio digital
O governo federal está lançando um documento de
identidade digital, chamado DNI (Documento Nacional de Identidade). Essa
poderia ser uma boa notícia, mas não é.
Os equívocos do DNI incluem ameaças à privacidade, centralização excessiva de dados
e dependência permanente do governo. Pior: apesar do nome, o DNI não é uma
identidade digital. Ele não assegura segurança, privacidade e autonomia a seu
portador, algo que uma identidade digital verdadeira deve ser capaz de fazer.
Sobre privacidade o DNI traz problemas graves. O
documento funciona na forma de um aplicativo que deve ser instalado no celular
do usuário. Ao ser baixado, o aplicativo pede obrigatoriamente autorização para
“fazer chamadas e gerenciar ligações telefônicas”. Isso permite que o app do
governo saiba seu número, faça ligações, leia a lista de ligações que você
recebeu, enxergue quem está ligando para seu celular, desligue o telefonema ou
até mesmo redirecione ligações para outros números.
Essa permissão é classificada como “perigosa” por
empresas de segurança. Em outras palavras, a identidade digital brasileira será capaz de
analisar para quem você liga e quem liga para você. Informações que hoje
dependem de ordem judicial para serem obtidas.
Não
faz sentido que um aplicativo de identidade, desenhado para ser usado por
milhões de pessoas, inclua uma coleta de informações massiva dessa natureza.
Para piorar, os termos de uso do aplicativo são vagos e confusos. Não informam
nem sequer que esses dados são exigidos.
Outro
problema do DNI é que ele não é propriamente uma identidade digital. Ele não
permite, por exemplo, que o cidadão faça o login certificado no site da Receita
Federal para fins de Imposto de Renda. Para isso, continuará a ser necessário
comprar o vergonhoso “e-CPF” (pagando cerca de R$ 180 por ano) que é oferecido
por um punhado de entidades privadas.
Uma
identidade digital de verdade deve reunir em
si todas as certificações necessárias sobre uma pessoa e funcionar como um
documento definitivo. O DNI não é isso. Ele será só mais um documento na pilha
infindável dos que já existem no Brasil, não eliminando nem sequer seu primo
rico, o “e-CPF”, que continuará necessário e caro.
Além
disso, o DNI é instrumento para uma centralização ainda maior de dados. Quanto
mais dados são centralizados, maior é o risco de que sejam vazados e maior o
dano causado nesses casos.
A
identidade digital que o Brasil deveria ter precisa funcionar como
infraestrutura, e não como remendo.
Ela
deve ser o caminho para unificar todos os serviços públicos em um único portal
(eliminando os mais de 30 aplicativos do governo federal que existem hoje, um
para cada serviço).
Ao
mesmo tempo, deve garantir a privacidade e permitir o controle dos dados por parte
dos seus titulares. Sobretudo, deve ser uma ferramenta para darmos um salto de
eficiência na administração pública, eliminando a burocracia e adicionando
inteligência.
O
DNI não faz nada disso. Ele é apenas a prova de que somos tão bons em produzir
burocracia que ela consegue ser recriada até mesmo no meio digital.
Ronaldo
Lemos - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio e
representante do MIT Media Lab.
Fonte:
coluna jornal FSP