Cientistas usam inteligência artificial e Twitter
para medir risco de depressão e ansiedade
Grupo
da USP utiliza tecnologia para avaliar padrões de escrita que sugerem
probabilidade de transtorno psiquiátrico.
A linguagem que usamos nas redes sociais pode virar
um indicativo de como anda a nossa saúde mental – e as máquinas seriam capazes
de encontrar padrões e sinais precoces de quadros como ansiedade e depressão.
Essa é a premissa de um trabalho que está em
andamento na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São
Paulo (EACH-USP).
Por lá, um grupo de pesquisadores está construindo
um algoritmo capaz de analisar perfis do Twitter e buscar algumas pistas que
sugerem transtornos psiquiátricos.
O trabalho, que está nas fases preliminares, já
construiu uma base de dados que ganhou o nome de SetembroBR – uma homenagem
dupla ao Setembro Amarelo, campanha de prevenção do suicídio que ocorre todos
os anos, e ao mês em que o projeto se iniciou.
COMPARAÇÕES MASSIVAS
O cientista da computação Ivandré Paraboni,
coordenador do projeto, explica que a base de dados reúne informações de 3,9
mil usuários do Twitter que afirmam terem recebido o diagnóstico de depressão
ou ansiedade.
Os pesquisadores compilaram as redes de conexões
desses perfis e todo o conteúdo em texto compartilhado por eles na rede social
– o que totaliza cerca de 47 milhões de pequenos textos de até 280 caracteres.
Todo esse material foi comparado ao de um outro
grupo de usuários do Twitter escolhidos de forma aleatória, que não
demonstravam ter passado por uma avaliação médica sobre saúde mental ou estarem
fazendo algum tratamento contra transtornos psiquiátricos.
"É claro que, no meio desse universo, podem
ter indivíduos que mentiram ou que omitiram essas informações.
Mas, como a base
de dados é grande, estimamos que esses falsos positivos ou falsos negativos
sejam poucos", pondera Paraboni, que também é pesquisador associado do
Centro de Inteligência Artificial, um instituto de engenharia mantido pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela IBM
Brasil.
Essa verdadeira biblioteca de posts foi anonimizada
– ou seja, os pesquisadores apagaram as referências à identitade dos usuários
que escreveram os textos (como nomes próprios e de usuário), por uma questão de
privacidade.
A primeira tarefa do projeto foi a de
"garimpar" toda essa base de dados para remover hashtags (palavras-chave
precedidas pelo símbolo #), menções a outras contas (que aparecem com um @),
caracteres fora do padrão e hiperlinks.
Depois, os dois grupos foram comparados. Além de
avaliar os textos compartilhados pelo Twitter, os pesquisadores também
conseguiram analisar a rede de contatos dos usuários, incluindo as contas que
cada um deles segue.
Paraboni ressalta a importância de fazer uma
iniciativa como essa em língua portuguesa.
"Já existem outros estudos desse tipo feitos
no exterior, mas eles analisam prioritariamente o conteúdo em inglês",
explica.
E, claro, existe uma série de particularidades
culturais e linguísticas – os padrões que se aplicam nesses países podem ser
completamente diferentes do que é comum no Brasil, entre falantes do português.
"Alguém precisa desenvolver essa infraestrutura
computacional, para que nós tenhamos acesso a essas ferramentas adaptadas para
o português", complementa o pesquisador.
OS
RESULTADOS
Os modelos encontraram alguns padrões iniciais, que
podem indicar uma propensão a doenças como ansiedade e depressão.
O primeiro deles é uma maior frequência de
postagens sobre si mesmo observada no grupo que declarava ter transtornos
psiquiátricos – por exemplo, com a utilização de verbos e pronomes
"eu", "me", "mim" – na primeira pessoa .
Outra constatação foi a de que esses indivíduos
recorrem bastante a emojis e símbolos gráficos que simbolizam
o coração.
Além disso, temas como morte, crise e psicologia
também são mais comuns nessas contas.
Para completar, indivíduos com ansiedade ou
depressão tendem a seguir outras páginas e usuários que tratem do tema – por
exemplo, grupos de pacientes ou o perfil de uma celebridade que anunciou um
diagnóstico recente de um desses transtornos.
"É importante explicar que os padrões
encontrados pelos modelos de aprendizagem profunda podem ser literalmente
qualquer coisa", destaca Paraboni.
"A forma como a pessoa se expressa nas redes
sociais não é necessariamente igual ao jeito que ela fala na vida real ou no
consultório do psiquiatra", complementa.
Ou seja, é possível que postagens em mídias sociais
como o Twitter revelem traços e características diferentes daquelas que
aparecem durante uma avaliação formal com um médico.
"A maioria dos padrões que encontramos são
abstratos e não há uma explicação para eles nas teorias da psicologia", ressalta
Paraboni.
Ou seja, pode até ser relativamente fácil especular
os motivos que fazem alguém com ansiedade ou depressão falar mais sobre si, até
porque isso também é observado durante o contato com um profissional da saúde.
Porém, outros aspectos e comportamentos, como
distribuir símbolos de coração ou seguir contas com a mesma temática, não são
coisas que vão aparecer tão facilmente durante o diálogo no consultório.
OS PRÓXIMOS
PASSOS
Agora que as primeiras versões do modelo de
inteligência artificial do SetembroBR já foram criadas, o grupo de
especialistas da EACH-USP começa a planejar os próximos passos do projeto.
Uma das metas é ampliar a base de dados que será
avaliada e refinar as técnicas de aprendizado profundo, para que os resultados
melhorem e as análises se tornem mais precisas.
Questionado pela BBC News Brasil se a meta é fazer
com que essa ferramenta seja capaz de diagnosticar casos de ansiedade e
depressão no futuro, Paraboni pede cuidado.
"Essa é uma das áreas mais perigosas quando
pensamos no uso dessas novas tecnologias", pondera.
"Ninguém quer ser diagnosticado erroneamente
ou, pelo contrário, ver um quadro como depressão ou ansiedade passar
despercebido."
"Eu prefiro ver essas bases de dados mais como
um complemento, um auxílio, ou um primeiro indicativo de que a pessoa pode
estar com alguma questão de saúde mental."
O cientista da computação antevê que o trabalho
possa servir, daqui a alguns anos, para alertar os pais quando o filho estiver
enfrentando algum problema.
"Quem sabe isso não possa virar uma ferramenta
que analise as redes sociais de crianças e adolescentes e ajude a indicar
alguma questão comportamental que mereça atenção e a avaliação de um
profissional da saúde?", especula.
A junção de inteligência artificial, redes sociais
e saúde mental não poderia vir num momento mais oportuno.
Primeiro, nunca se falou tanto sobre aprendizado de
máquinas quanto agora, momento em que ferramentas como o Chat GPT chegam ao
público e provocam grandes discussões na sociedade.
Segundo, o uso das mídias sociais segue em alta – e
o Brasil é o terceiro país com o maior número de usuários ativos dessas
plataformas em todo o mundo, atrás apenas de Índia e Indonésia.
De acordo com um levantamento publicado em março
pela Comscore, os brasileiros mantêm 131 milhões de contas ativas nas redes
sociais e passam 46 horas (ou quase dois dias inteiros) do mês mexendo em
YouTube, Instagram, Twitter, TikTok e afins.
Para completar, os transtornos psiquiátricos também
estão em ascensão. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a depressão
afeta 3,8% da população (ou 280 milhões de pessoas).
A entidade também aponta que esses números
cresceram ainda mais nos últimos anos: houve um aumento de 25% na prevalência
de ansiedade e depressão desde o início da pandemia de Covid-19.
Fonte: BBC NEWS