Pressão na
pandemia torna urgente falar de saúde mental no trabalho
Empresas com programas de atenção ao funcionário notam aumento no
desempenho e queda em custos
Precisamos falar sobre saúde mental no ambiente de trabalho. Com um
apelo inédito, especialmente por causa do impacto da pandemia na rotina
laboral, essa frase reverbera dentro das empresas e ganhou porta-vozes, neste
início de ano, até no Fórum Econômico Mundial.
O encontro, que trocou Davos, na Suíça, por palestras virtuais, dedicou
uma sessão para debater o assunto e divulgou a criação de uma agenda global
para acelerar mudanças positivas no modo como a saúde mental dos trabalhadores
é abordada nas empresas.
O tema não é novo, mas segue cercado de estigma e preconceito e no fim
da lista de prioridades das empresas. E a queixa não parte apenas dos
funcionários.
“Acho que agora está claro e todos entendem que é a coisa certa a fazer
[dar atenção à questão]. E agora conseguimos provar que isso é também bom para
os negócios”, disse Garen Staglin, da organização One Mind, durante o Agenda
Davos, como foi batizada a iniciativa. “Está tudo bem não estar bem. Precisamos
normalizar esta ideia."
Segundo dados divulgados no encontro anual, empresas em todo o mundo
perdem cerca de US$ 2,5 trilhões em produtividade, com faltas no trabalho e
rotatividade.
Sentiram-se
mais ansiosos quanto à segurança no emprego - 60
Vivenciaram
estresse por mudanças na rotina de trabalho e com organização - 56
Tiveram
de trabalhar em casa - 54
Tiveram
dificuldades em equilibrar vida-trabalho - 50
Tiveram
dificuldades em trabalhar em casa devido à inadequação das instalações - 50
Tiveram
queda na produtividade - 49
Sentiram-se
sozinhos ou isolados enquanto trabalhavam em casa - 48
Trabalharam
em horários não convencionais (muito cedo ou muito tarde) - 48
Vivenciaram
estresse por questões familiares, como cuidado com crianças - 45
Reduziram
o número de horas trabalhadas - 39
Aumentaram
as horas de trabalho - 32
Pegaram
licença desde o início da pandemia - 23
Deixaram
o trabalho - 19
Fonte:
Pesquisa Ipsos para o Fórum Econômico Mundial
Com a pandemia, a pressão sobre a força de trabalho aumentou.
Entre os que foram colocados em home office, os limites entre a vida pessoal e
profissional desapareceram.
Se antes passávamos 70% de nossas horas acordados no trabalho, agora
passamos 100% do tempo no trabalho, pois trabalho e casa são a mesma coisa”,
afirmou Staglin. Na avaliação do especialista, o medo da contaminação e do
desemprego não deixam de rondar os pensamentos.
“Casos de estresse, burnout e insônia cresceram,
e as empresas tiveram queda na produtividade”, afirma Michael Kapps, fundador
da Vitalk, startup de bem-estar e saúde, que viu uma
espécie de boom na busca por serviços de terapia e telemedicina a partir de
junho do ano passado.
Com a pandemia, a empresa registrou um crescimento de 20%, e a entrada
de pelo menos um cliente por semana.
Quem adotou ou melhorou as estratégias de cuidado com
saúde de seus trabalhadores diz já ter visto resultados. Na GSK, as equipes com
melhores performances em 2020 foram as mesmas que tiveram maior redução no
nível de estresse.
Na média, a companhia farmacêutica calcula ter reduzido em 50% o risco
de burnout, termo em inglês usado para o diagnóstico de estresse crônico no
trabalho.
O cálculo, segundo Marina Tavares, líder do programa de saúde e
bem-estar da GSK, é baseado no método HSE (Health and Safety Executive),
utilizado no Reino Unido.
Na BDO, a percepção do efeito positivo da adoção de um plano mais amplo
de atenção ao bem-estar dos funcionários vem do “boca a boca”, segundo a
gerente de RH Julia Brunetti. Ela avalia que, em breve, será possível ver o
resultado também em cifras.
“Ainda não sabemos o retorno do investimento, mas sabemos que haverá,
especialmente com relação às buscas por atendimento no pronto-socorro, que têm
um custo altíssimo”, afirma.
A criação de um programa do tipo estava nos planos da empresa, mas foi a
pandemia quem deu o empurrão final. Na avaliação da gerente de RH, lançar um
programa dá profundidade ao compromisso da empresa com a equipe.
“Por mais que o RH diga que está disponível para ouvir, para ajudar,
quando você implanta uma ação, isso fica claro”, diz. A BDO contratou um
mapeamento de saúde mental que permitiu a cada funcionário receber um
relatório.
Alguns receberam a indicação para participar de um programa
multidisciplinar com psicólogos, enfermeiros e psiquiatras.
Não existe uma receita para a implantação de um plano que busca
bem-estar psicológico. As empresas têm buscado modelos que se adaptam a sua
realidade.
A Johnson&Johnson Brasil, por exemplo, reorganizou o
programa de assistência já existente, que inclui sessões de aconselhamento, e
criou uma política de acordos de trabalho flexíveis, que permitem ao
funcionário horários e local de trabalho customizados, redução de jornada e
licença não remunerada.
Na Votorantim Energia, o programa de bem-estar inclui prática de
exercício, meditação e ioga, além de sessões de terapia por meio da plataforma
Zenklub.
Fundada em 2016 pelo médico português Rui Brandão após uma experiência
familiar com burnout, a Zenklub passou de 12 clientes corporativos para 214 no
ano passado.
O que se observa é que há interesse entre os trabalhadores.
Na Vale, a adesão do funcionário à autoavaliação de saúde
emocional, que é voluntária, cresceu dez vezes.
A companhia atribui o aumento
às campanhas de divulgação e a uma maior confiança dos empregados em contar com
a empresa, que também ampliou canais de apoio e comunicações, remodelou
serviços, como a inclusão de psicoterapia online e telemedicina, e adaptou para
o virtual atividades físicas.
Quem está na ponta do atendimento relata que esse tipo de
iniciativa representa um acolhimento.
Quando pensa na rotina que tinha até março do ano passado,
Tathiane Martins, 23 anos, define o dia a dia como agitado, movimentado e com
pouco tempo em casa.
Para conciliar a vida de estagiária na GsK e de estudante,
acordava cedo, dormia pouco e passava muitas horas no trânsito entre Niterói
(RJ) e o bairro de Jacarepaguá, na capital fluminense.
Com o início da pandemia, veio o home office e, com ele, uma
sequência de transformações. O primeiro efeito da reviravolta na rotina foi a
insônia. Estar longe dos colegas de trabalho foi outro problema.
“Ainda tinha que lidar com a instabilidade da internet em casa.
Era muita frustração, comecei a ficar muito mais ansiosa.
Antes, passava a
maior parte do dia fora de casa. De repente, estava o tempo todo lá. E não só
isso, mas a falta de perspectiva de quando ia acabar.
Era muito difícil focar
no trabalho, no que eu precisava fazer”, diz.
O caminho para “voltar a pisar o chão” passou por sessões de
terapia oferecidas pelo programa de saúde da empresa, conta Thatiane. “É um
trabalho de escuta ativa.
A pessoa te ouve e te ajuda a buscar soluções para o
que você está vivendo”, diz.
Desde setembro, ela utiliza também os serviços de uma assistente
virtual. No horário programado por Thatiane, ela envia mensagens: "está
tudo bem com você?".
“Foi uma mobilização para que ninguém se perdesse. O conjunto
desse apoio na empresa foi fundamental para me dar esperanças, me sentir aberta
a novas ideias e projetos”, afirma.
Apesar do esforço de muitas companhias, Kapps, da Vitalk, vê um
longo caminho a ser percorrido no modo como o Brasil lida com o assunto.
A
estratégia, disse, precisa ser multifatorial, pois nem sempre a mesma solução
atenderá a todos –teleterapia, atendimento por texto, atividade física,
meditação, psiquiatria, medicação.
“As pessoas vão entender que oferecer apenas terapia não tem
efeito. Você oferece, mas as pessoas não usam porque tem um estigma grande, ou
porque acham que não precisam”, afirma.
Outro problema ainda pouco tratado, na avaliação dele, é o papel
dos chefes na pressão percebida pelos funcionários. Isso pode aparecer tanto na
carga de trabalho quanto nas reações a quadros ansiosos.
Tereza Veloso, diretora técnica e de relacionamento com
prestadores da SulAmérica, disse que são comuns os relatos de episódios de
estresse ligados ao relacionamento com superiores nas empresas.
“Por isso insistimos que é importante formar gestores para que
eles reconheçam quando a pessoa precisa de ajuda. Precisa tirar o estigma,
mostrar que essa pessoa volta ao trabalho”, afirma.
A seguradora tem hoje 30 empresas aguardando para aderir ao
Única Mente, programa de saúde mental criado em 2019.
Na versão levada até as
companhias, é feito um mapeamento dos funcionários, que depois são convidados a
participar do programa.
Segundo Tereza, as empresas já demonstravam preocupação
com o assunto no pré-pandemia, mas a crise sanitária alavancou a necessidade.
“Fazer o diagnóstico precoce é muito importante. Vai ficando claro
que é um pequeno investimento, com um ótimo retorno.
A OMS [Organização Mundial
de Saúde] calcula que para cada US$ 1 investido em saúde mental, o retorno seja
de US$ 5 em produtividade. É necessário mudar a cultura organizacional”.
FONTE: FOLHA DE SÃO PAULO