O que um casaco sem a cordinha do capuz pode dizer
de um alcoólatra
Na internação,
tudo o que pode ser autodestrutivo é retirado; ainda vou comprar o cordão e ele
vai virar símbolo de guerra
Não fico lembrando nem remoendo o período em que estive internada.
Passou, estou
bem. Só que dia desses minha mãe encontrou um moletom de que gosto muito e que
estava na casa dela, no fundo de um armário. Veio a calhar, afinal o frio pegou
de vez e ele é bem quentinho, com capuz. Uma delícia.
Quando vesti o casaco, notei a falta da cordinha do
capuz e aí sim me veio à tona a lembrança da última internação.
Quando somos
internados, todos ali são suicidas em potencial, então tudo aquilo que pode
ajudar na tarefa de automutilação nos é retirado. Nessa última internação,
perdi essa cordinha. Nas outras, perdi cadarços de tênis.
Que foram
substituídos por um esparadrapo. Era muito deprimente andar com o tênis meio
capenga. Mas assim são as regras.
Eu inclusive tenho um tênis da época da minha
primeira internação, em 2013. Quando saí da clínica, fui comprar novos cadarços
e ele tomou outra vida.
Mas minha primeira vontade era me desfazer de tudo.
Algumas coisas eu tirei da minha vida. Nunca mais usei a marca de xampu que
usava naquele período, joguei fora o chinelo que usava para tomar banho.
O
cheiro, as comidas, as pessoas, eu queria deixar para trás tudo e todos, nunca
mais ver, sentir, ver...
Enquanto escrevo a coluna com o agasalho, choro
muito. Foram 25 dias ausentes dessa vida naquele período. Eu não estava
consciente e não lembro de nada.
Mas do agasalho, não tem como, eu havia
comprado um dia antes do episódio. Essa internação foi um processo doloroso
porque todas as anteriores haviam sido voluntárias, ou seja, eu havia
concordado em ir porque sabia que era a única solução para brecar meu alcoolismo.
Só que essa última, eu
fui de ambulância –primeiro me levaram para um hospital, onde concluíram que eu
não tinha condições de viver em liberdade.
Só que eu não tinha bebido.
O pior, acredito, é tudo isso ter acontecido em
outro país. Eu tinha bebido ou não, se perguntavam aqueles que estavam no
Brasil. Nunca tinha acontecido algo parecido desde que eu estava sóbria.
Fui
internada. Não queria comer, não queria falar com ninguém. A confusão era
grande. Nenhum médico falava a minha língua. Lembro por alto de achar que
estava participando de algum programa de televisão. E fiquei encolhida no meu
quarto. Chorando e com o moletom.
Minha família sempre me salvou dos meus problemas,
e dessa vez não foi diferente. Meus irmãos foram ao meu encontro e minha
mãe também.
Quando eles me visitavam, era um choque grande porque eu me via
confrontando meus dois mundos. Por que eu estava ali? Ninguém conseguia me
ajudar.
Foram muitas as vezes em que não recebi meus parentes, ou porque estava
muito agitada e os médicos proibiram, ou porque queria ficar sozinha, olhando
pela janela do quarto.
Lembro de tudo isso hoje porque faz exatamente um
ano que consegui sair da internação. Depois de muitos esforços e ajudas dos
colegas que estavam trancafiados comigo, da minha família.
E sentindo falta do
amor absoluto do meu cachorro. Lá ninguém entendia quando eu ficava chamando
por ele, aos gritos.
Mas passou. Estou aqui, com o agasalho sem cadarço,
com certa melancolia mas com toda força do mundo para seguir em frente. Daqui a
pouco vou comprar o tal cordão e ele vai virar um símbolo de guerra, sem
exagero.
ALICE S. – blog Vida de
Alcoólatra