Há quem diga que a tecnologia cria transtornos em nossas
vidas: excesso de exposição, déficit de atenção, relacionamentos superficiais.
Eu digo que tudo isso é mau uso, e o problema é outro, de certa forma até mais
grave, e que pode ser resumido na frase seguinte: eu tenho mais de vinte anos
de educação formal, incluindo um PhD – e ainda assim seria incapaz de fazer um
lápis, muito menos construir o computador que estou usando.
A essência do problema é que, graças à tecnologia e sua
transmissão cultural, as conquistas da espécie humana há muito tempo
transcenderam o domínio de cada indivíduo – o que é ótimo, mas arriscado.
Juntos, alcançamos a lua e além. Mas sozinhos, cada um de nós detém apenas uma
pequena parte das tecnologias criadas coletivamente por nossa espécie – e, com
a atual desvalorização da ciência e um certo repúdio tolo por tecnologias,
corremos o risco de perder parte do que conquistamos.
Tecnologias são objetos ou sistemas que ajudam a resolver
problemas. A primeira invenção tecnológica de nossa espécie, cerca de 3 a 4
milhões de anos atrás, foi a faca de pedra lascada, que podia ser usada para
furar e rasgar a pele de animais, cortar e picar sua carne, e esmagar e amassar
raízes duras. É uma tecnologia primitiva de fato, mas que comprovadamente
aumenta a obtenção de calorias dos alimentos –e que, somada à tecnologia
seguinte, o uso do fogo para cozinhar, provavelmente nos libertou da
necessidade de passar o dia inteiro procurando e ingerindo alimentos.
Sem as tecnologias que hoje usamos sem pensar duas vezes
em nossas cozinhas, seria inviável dedicarmos tantas horas por dia ao
aprendizado do conhecimento acumulado pelas gerações anteriores, muito menos à
geração de novas tecnologias que solucionam nossos problemas atuais e nos
permitem pensar no problema seguinte.
Ter inigualáveis 16 bilhões de neurônios corticais não
basta. Nosso cérebro atingiu sua configuração atual cerca de 400 mil anos
atrás, mas transformar as capacidades cognitivas correspondentes em nossas
habilidades maravilhosas atuais continua dependendo de um processo de
aprendizado individual que leva uma vida inteira, à base de transmissão
cultural de tecnologias acumuladas. Sem isso, talvez uma faca eu conseguisse
fazer - e olhe lá.
É por isso que a ciência (o conhecimento) e a engenharia
(o know-how) precisam ser valorizadas e cuidadosamente cultivadas,
documentadas, e passadas adiante: para garantir que nossas capacidades
biológicas continuarão gerando as habilidades intelectuais e tecnológicas das
novas gerações.
Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro
"Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante)
Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com