Dados inéditos da Agência Nacional de Saúde Suplementar apontam
que as solicitações de tomografia e ressonância por convênios
particulares cresceram 22% em dois anos; para especialistas e ANS, muitas
solicitações podem ser feitas de forma indevida
Eliane Ferreira Santiago, de 37 anos, convive desde criança com
dores fortes em todo o corpo e uma fadiga crônica. Foi em diversos médicos e
conta que fez, em diferentes faixas etárias, vários exames. Ela foi
diagnosticada com reumatismo, mas as dores nunca passavam. “Há uns dez anos,
comecei a pesquisar por conta própria e vi que tinha todos os sintomas de
fibromialgia. Procurei um médico e depois disso é que ele conseguiu me
diagnosticar”, diz. Hoje, criou até um grupo sobre a doença nas redes
sociais. “Quase todo mundo com a síndrome demorou anos para descobrir
porque os médicos não prestam atenção aos sintomas que o paciente
descreve. É uma negligência que traz sofrimento.”
Dados inéditos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS),
obtidos pelo Estado, mostram que os médicos de planos de saúde brasileiros
já pedem mais exames de tomografia e ressonância do que profissionais
de países desenvolvidos. O número desses procedimentos por pacientes
de convênios médicos no País cresceu 22% em apenas dois anos, o
que, segundo a ANS e especialistas, indica que muitas solicitações podem
estar sendo feitas indevidamente.
Entre as principais razões para a realização excessiva dos
procedimentos estão falhas na formação médica, interesses financeiros de
hospitais e laboratórios e má remuneração por parte das operadoras aos
prestadores de serviço. O fenômeno, além de aumentar o desperdício de
recursos no sistema privado, ainda traz riscos aos pacientes, como a
exposição frequente a radiações comuns em exames de imagem.
A tomografia computadorizada e a ressonância magnética são
usadas como referência pelos países da Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para avaliar o acesso aos recursos
de saúde na área de tecnologia médica. Enquanto nessas 35 nações –
incluindo algumas das mais desenvolvidas do mundo, como Alemanha, França
e Estados Unidos –, a média anual de ressonâncias é de 52 por 1 mil
habitantes, no sistema suplementar brasileiro o índice foi de 149 por 1
mil beneficiários em 2016, segundo o mais recente Mapa Assistencial da
Saúde Suplementar da ANS, que será publicado na próxima semana.
A média de tomografias realizadas também é superior nos planos
de saúde do Brasil em 2016 em comparação com países ricos: 120 exames por
1 mil habitantes nas nações da OCDE ante 149 por 1 mil beneficiários
dos convênios médicos brasileiros.
Considerando os números absolutos, o número de ressonâncias
feitas por pacientes de convênios passou de 5,7 milhões em 2014 para 7 milhões
em 2016, alta de 22%. Já o de tomografias passou de 5,9 milhões para 7
milhões no mesmo período, crescimento de 18%. Mesmo se avaliados todos os
tipos de exames feitos por beneficiários de planos, houve aumento de 12%
no número de procedimentos entre 2014 e 2016.
Desperdício
Para Karla Coelho, diretora de normas e habilitação de
produtos da ANS, a diferença entre os índices do Brasil e de outros países
traz um alerta. “É um desperdício de recursos. Enquanto os prestadores de
serviço, como hospitais e laboratórios, forem pagos por procedimento e não
por qualidade, o número de exames será infinito”, diz ela.
Já o professor da Faculdade de Medicina da USP Mario Scheffer
destaca que “os convênios não trabalham tanto com prevenção e promoção de
saúde, ficam focados na atenção especializada e, muitas vezes, ainda
pressionam os médicos a fazerem atendimentos rápidos para que seja
possível atender mais pacientes no mesmo dia”. “Assim, o tempo que deveria
ser gasto com anamnese e conversa com o paciente é substituído pela
indicação de exame.”
Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São
Paulo (Cremesp), Mauro Aranha ressalta que, além da questão da
baixa remuneração pelos planos de saúde, as falhas na formação médica
podem estar contribuindo para esse cenário de dependência do uso de
tecnologia nos diagnósticos. “O médico que não tem competência suficiente
para uma avaliação clínica vai tentar compensar com pedidos de exames.”
30% dos resultados nunca chegaram a ser consultados
Diretor da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge),
Pedro Ramos afirma que são os hospitais, laboratórios e até mesmo alguns
médicos são os responsáveis pelo excesso de exames realizados. “Os
tomógrafos no Brasil viraram máquinas de fazer dinheiro. Os prestadores de
serviço lucram e há profissionais que chegam a ganhar comissão por prescrever
mais procedimentos. Saúde não é isso. Não somos contra a tecnologia, mas
ela tem de ser usada quando necessária”, comenta.
Ele relata que 30% dos exames de imagem realizados por pacientes
de convênios médicos nem sequer têm os resultados retirados (já
considerando os que são acessados pela internet). “Isso aumenta gastos das
operadoras e, por consequência, as mensalidades dos planos.”
Segundo a diretora da ANS Karla Coelho, a agência tem apostado,
como principal estratégia para minimizar o problema, na discussão de
novos modelos de contrato entre prestadores de serviço e operadoras. O
ideal, diz ela, é que o pagamento fosse feito por resolutividade e não por
procedimento feito. No formato almejado, os planos deveriam remunerar
melhor também os prestadores que investissem em ações de prevenção de
doenças. “Há algumas iniciativas de algumas empresas e um grupo de
trabalho interno na ANS.”
‘Foi dizendo que não era nada, mas fez vários pedidos’
A família Supino, de Sorocaba, no interior de São Paulo,
coleciona casos de médicos que pedem exames sem “olhar o rosto” do
paciente. O casal, Alice Supino, de 49, e Antonio Carlos Supino, de 58
anos, têm plano de saúde e fazem questão de recorrer a médicos quando eles
ou as filhas, Débora, de 20 anos, e Ana Paula, de 15, apresentam os
primeiros sintomas.
Em um dos casos mais recentes, Débora conta que ligou com dores
para o consultório da ginecologista que a atende há cinco anos para marcar
consulta. “Talvez por estar com pouco espaço na agenda, a secretária (da
médica) deu o diagnóstico de infecção de urina por telefone e pediu que eu
passasse no consultório pegar guias para ultrassom e exame de urina.”
Segundo ela, a médica assinou os pedidos sem examinála. “O pior é que não
havia infecção de urina e, sim, uma inflamação nas trompas (uterinas), e
precisei tomar antibióticos fortes.”
Ana Paula passou por um problema semelhante depois de detectar
um caroço na mão direita, perto do pulso. Ela reclamava de dores e a mãe
decidiu levá-la a um ortopedista. “Ele olhou a mão dela de longe, do
outro lado da mesa, e foi dizendo que não era nada, mas pediu vários
exames, entre eles um ultrassom. Sem saber do que se tratava, receitou um
anti-inflamatório para a Ana ir tomando até que os exames ficassem
prontos. Saí do consultório furiosa, achei que ele pediu os exames por
pedir, pois nem examinou a mão da minha filha. A sensação era de que a
gente estava atrapalhando.” Alice decidiu procurar outro médico que
examinou a mão da filha, fez um raio X na própria clínica e diagnosticou
um cisto.
Antonio Carlos também lembra o drama que viveu há quatro anos
quando foi internado com dores abdominais e passou por uma bateria de
exames, mas os médicos nada encontraram. “Era um exame atrás do outro.”
Diagnóstico impreciso
Em 2015, ele também passou por atendimento com febre e
dores. “De cara foi dado diagnóstico de dengue e pediu-se uma série de
exames. Depois de análises de sangue e outras, a dengue foi
descartada. Até hoje não sei o que era.”
Fonte: O Estado de S. Paulo