Fome de ética
Como fica o cardápio da
publicidade quando falta seu ingrediente principal
Informar sem enganar e persuadir sem manipular.
Aí reside um dos
maiores desafios da publicidade.
Em tese, não deveria ser um desafio em si, e
sim a conduta padrão. O desafio se dá a partir do momento em que esse princípio
se dilui, muitas vezes de forma sutil, e borra a fronteira entre persuadir e
manipular.
Ou entre informar e enganar. Conceitos que, não raro, podem parecer
abstratos quando analisados de forma superficial, mas cujas bases se encontram
na noção de ética.
Entra-se, então, em um conceito que soa ainda mais subjetivo,
embora trate sempre do coletivo.
Como define o filósofo Mário Sergio Cortella,
"a ética é o conjunto de princípios e valores que usamos para decidir a
nossa conduta social".
Afinal, como o próprio Cortella esclarece, “ética é
a regulação da conduta da vida coletiva.”
Na publicidade não é diferente. Ela deve, antes de mais nada,
estar constantemente atrelada ao exercício ético.
Ainda que em alguns momentos
a aplicação dessa ética falhe, e que nem todos a utilizem com o mesmo critério,
ela se faz fundamental.
Isso leva a uma reflexão que passa por manipulação e críticas à
publicidade exercida de forma antiética.
Um caso recente, que veio à tona no
mês passado, chama a atenção.
Trata-se da campanha em redes sociais, atribuída
ao iFood, com relação à fanpage no Facebook, “Não Breca Meu Trampo”, de
conteúdo político, e à página de memes “Garfo na Caveira”.
Fazendo um rápido flashback, em 1.º de julho de 2020, a pandemia
de Covid-19 estava em um período bastante tenso e crescente. Vacina ainda era
um sonho distante e o mundo estava em sobressalto.
Aqui no Brasil a situação
também não estava nada boa. Foi quando aconteceu o que ficou conhecido como o
“Breque dos Apps”.
Milhares de entregadores de aplicativos, em 13 estados do país e
no Distrito Federal, paralisaram suas atividades, reivindicando melhores
condições de trabalho.
O que eles queriam é que as empresas de tecnologia, que
controlam o setor de delivery, dessem um aumento no valor pago por entrega,
além de garantir medidas de proteção contra a Covid-19.
Uma semana após o “Breque dos Apps”, a página “Não Breca Meu
Trampo” foi criada no Facebook.
Em seu rastro veio a “Garfo na Caveira”.
Aí
começa a se desenrolar um novelo que veio à tona no começo de abril de 2022: no
dia 11 daquele mês, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária
(Conar) comunicou que “abriu processo investigatório sobre a campanha em redes
sociais, atribuída ao iFood, conforme denúncias publicadas na imprensa.”
As denúncias referidas pelo Conar foram feitas em uma reportagem
publicada em 4 de abril de 2022 no site da Agência Pública – agência de
jornalismo investigativo independente e sem fins lucrativos.
A reportagem relatava que o iFood – que já era líder em delivery
online de comida na América Latina – teria contratado agências de inteligência
artificial e de monitoramento digital para infiltrar campanhas de outros temas
na greve de seus trabalhadores.
Em outras palavras, o iFood teria tentado
sabotar as reivindicações de seus entregadores, desde julho de 2020, quando
ocorreu o “Breque dos Apps”.
O objetivo, segundo uma das pessoas que acompanhou o processo,
era “suavizar o impacto das greves e desnortear a mobilização dos
entregadores”.
Ou seja: as agências de publicidade contratadas pelo iFood
atuavam para desarticular o movimento dos entregadores.
Mais que isso: teriam
produzido páginas “falsas”, que seriam geridas por outras agências, a pedido do
iFood, mas sem que fosse revelada nem a autoria e nem a origem das postagens.
A estratégia de publicidade supostamente utilizada pelo iFood é
conhecida como “lado B”, quando se fabrica conteúdo de modo que pareça amador e
verdadeiro, mas sem revelar a autoria.
Não deixa de ser preocupante (e até
assustador) que esse tipo de manobra deturpe os limites éticos da publicidade.
Quando uma organização com o nível de popularidade e sucesso do
iFood se dispõe, supostamente, a embaralhar fatos e enfoques para sabotar as
reivindicações de seus próprios trabalhadores, é hora de pensar no papel da
ética na prática, como algo aplicável à publicidade, e não apenas um conceito
abstrato e desligado da realidade.
O iFood foi fundado em 2011, aqui no Brasil, com a missão de ser
a maior e melhor plataforma de entrega de comida pela internet da América
Latina.
A missão foi cumprida. Tanto que o iFood também está presente na
Argentina, no México e na Colômbia.
A empresa conta com mais de 2 milhões de
usuários ativos e emprega 700 colaboradores no Brasil.
É o app mais usado para
pedir refeições no país.
A campanha empreendida pela página “Não Breca Meu Trampo” causou
ruído na greve dos entregadores, desviou o foco das reivindicações, dividiu
opiniões e confundiu os interesses de uma manifestação legítima.
Tudo
arquitetado, segundo a denúncia, de forma minuciosamente estudada e planejada,
por meio da utilização de técnicas para fomentar versões da empresa sobre a
pauta dos entregadores.
Práticas usuais da publicidade, porém – e aqui vale um
grande porém – realizadas de forma antiética.
O potencial de influência da publicidade na formação de ideias e
comportamentos de indivíduos e grupos é inegável.
E essa formação de ideias
deve ser conduzida de forma ética, para que a persuasão não se confunda com
manipulação.
A base da persuasão e da manipulação está na confiança.
Quando
se pretende persuadir uma pessoa ou grupo a tomar uma decisão, tenta-se mostrar
os possíveis benefícios daquela opção que está sendo "vendida".
É uma
relação na qual os dois lados ganham. No entanto, quando se busca convencer um
grupo a optar por algo que vai beneficiar apenas ao manipulador, o que se tem é
a má fé. Escamoteia-se a ética em nome da manipulação.
E essa não é a essência
da publicidade.
O caso do iFood não é um episódio isolado. E seu molho indigesto
respinga na publicidade, de maneira geral.
Claro que esse debate é muito mais
amplo e complexo.
E nem é novidade. Não é de hoje que ele se mantém presente em
nossa sociedade, na qual a publicidade, em alguns casos, carece de um
ingrediente indispensável: ÉTICA.
EDUARDO PASCHOA - consultor em Marketing