Escola precisa se conectar com demandas dos jovens


Pesquisa Projeto de Vida mostra que modelo de educação atual deve ser alterado para preparar estudantes para vida adulta

Uma nova pesquisa realizada com estudantes, professores universitários, empregadores e líderes da sociedade civil revela a necessidade de aprofundar o debate em torno de um novo modelo educacional. O estudo chamado Projeto de Vida, realizado pela Fundação Lemann, com apoio técnico do Movimento Todos pela Educação, mostra que existe uma desconexão preocupante entre o que é ensinado na escola atualmente e o que os jovens precisam saber para concretizar os seus diferentes projetos de vida.

Para a realização da pesquisa, foram feitas 126 entrevistas com jovens recém-formados no ensino médio – em sua maioria egressos de escolas públicas -, professores universitários, empregadores e líderes da sociedade civil de todas as cinco regiões do Brasil. Em comum entre os diferentes grupos de entrevistados está a percepção de que a escola tem falhado na preparação de seus alunos para a vida adulta. São muitas as queixas em relação a problemas relativos a comunicação, raciocínio lógico, conhecimentos básicos matemáticos e postura profissional vindas de professores universitários e empregadores, que recebem e convivem com os jovens recém saídos da escola, mas há também uma reflexão perturbadora feita pelos ex-alunos. “São os próprios jovens que estão afirmando que não conseguem aplicar seus aprendizados quando confrontados com diversas situações do cotidiano”, afirma o pesquisador Haroldo Torres, responsável pelo estudo.



São jovens entre 20 e 21 anos, de diferentes perfis étnicos e socioeconômicos, que se destacaram pelas notas acima da média no Enem, já estão empregados ou entraram em uma faculdade, mas ainda assim se sentem sentem mal orientados e pouco preparados para lidar com seus desafios diários. Para os professores universitários e empregadores, as lacunas de formação vão além de os jovens não saberem escrever um e-mail de trabalho, expor argumentos oralmente na faculdade ou interpretar gráficos simples de produção. “Nas entrevistas, apareceu de forma espontânea e com certa força a preocupação com as habilidades socioemocionais, especialmente atitude, proatividade, comprometimento, curiosidade, persistência”, explica Haroldo.

De acordo com a pesquisa, as lacunas percebidas tanto pelos jovens quanto por seus empregadores e professores são de natureza cognitiva, socioemocional e comportamental. No campo das deficiências cognitivas, destacam-se as relacionadas à língua portuguesa. No geral, os jovens têm muita dificuldade em compreender instruções orais e escritas, expressar-se com sentido, correção e adequação contextual tanto na fala ou quanto em mensagens escritas simples e interpretar ou expor argumentos em situações de comunicação mais complexas.

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A matemática também é uma área preocupante, com queixas de todos os grupos em relação à dificuldades para realizar as quatro operações básicas, calcular percentagens, interpretar gráficos e tabelas e elaborar planilhas, além da falta de raciocínio lógico e de educação financeira para administrar o próprio salário. Já no campo das habilidades socioemocionais, destaca-se o “grande receio dos jovens em mostrar que não sabem algo e de fazer perguntas para sanar suas dúvidas. Junto dessas críticas – e, em alguns casos, derivadas delas – surgem outras, como falta de curiosidade, autonomia, comprometimento, foco, resiliência, disposição para correr riscos e se posicionar”, frisa um trecho da pesquisa.

Lições e caminhos

Além do diagnóstico dos problemas que têm impedido os jovens de concretizar seus anseios pessoais e profissionais, a pesquisa também apresenta alguns pontos importantes para o debate de um novo modelo educacional. Os jovens entrevistados insistem na necessidade de métodos de ensino mais atuais e citam como boa referência em metodologia o professor de cursinho, por dar exemplos práticos da aplicabilidade dos conteúdos e desenvolver aulas mais dinâmicas, divertidas e focadas. Para eles, músicas, vídeos, leituras de histórias e conversação devem ser usados como instrumentos de estímulo para o aprendizado, por exemplo, de idiomas, e atividades extracurriculares, como educação física e artística, devem ser exploradas como possibilidade de desenvolver a criatividade, autoconfiança, disciplina, liderança e capacidade de trabalhar em equipe.

“São os próprios jovens que estão afirmando que não conseguem aplicar seus aprendizados quando confrontados com diversas situações do cotidiano”

Além disso, eles gostariam de ter recebido ajuda no encaminhamento profissional, por meio de visitas a faculdades, contato com alunos universitários e conversas com psicólogos. Também acreditam ser importante ter noções sobre o mundo corporativo antes de ingressar no mercado de trabalho, com aulas sobre como estruturar projetos, montar slides, trabalhar em equipe e se portar numa entrevista de emprego, por exemplo.

Para os professores universitários, empregadores e representantes de ONGs que participaram da pesquisa, a tecnologia é uma janela de oportunidade não só para o engajamento nos estudos, mas para o aprimoramento dos conhecimentos. Eles elogiam as habilidades dos jovens no uso de recursos tecnológicos e a capacidade de se adaptar rapidamente a novas plataformas, mas destacam que ainda falta o domínio de algumas ferramentas específicas, como o Excel, bastante valorizado no mercado de trabalho, e o uso intensivo do celular e da internet para assuntos pessoais durante as aulas e o expediente de trabalho.

A pesquisa, que pretendeu fazer um mapeamento do legado do ensino básico para os jovens brasileiros, traz também algumas lições úteis à elaboração de uma Base Nacional Comum. “Os resultados da pesquisa contribuem para o debate sobre o que, afinal, a sociedade espera que os alunos aprendam na escola, para que consigam ter uma vida plena e produtiva após a conclusão da educação básica”, afirma Denis Mizne, diretor Executivo da Fundação Lemann.

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Para isso, a pesquisa contou com a contribuição e análise das especialistas em currículo Delaine Cafiero Bicalho, doutora em Linguística e professora da Faculdade de Letras da UFMG, e Maria Ignez Diniz, doutora em Matemática e professora do Instituto de Matemática e Estatística, da USP. De acordo com as especialistas, os resultados mostram que o currículo atual é conteudista e não desperta interesse nos jovens. Especialmente as entrevistas dos jovens reforçam que os currículos que predominam nas escolas atualmente são extensos, pouco aprofundados e não favorecem a integração entre as diferentes áreas do conhecimento. Além disso, disciplinas diferentes requerem diferentes formas de raciocínio e reflexão.

Para elas, a Base Nacional Comum deve detalhar não apenas os conhecimentos a serem trabalhados nas escolas, mas também quais habilidades os alunos devem desenvolver com os conceitos e conteúdos ensinados. Além disso, ela deve garantir uma integração mais clara entre as diferentes áreas, para que os conhecimentos e as habilidades sejam trabalhados de forma mais integrada e menos segmentada. “Na Base Nacional Comum, é desejável que a organização dos conteúdos seja hierarquizada, mas as habilidades que esses conteúdos mobilizam precisam ser construídas em rede. A Base precisa apresentar com clareza a relação das habilidades com os conceitos e conteúdos a serem ensinados”, destaca um trecho da pesquisa.

“A língua portuguesa deve ser ensinada como um recurso que se adapta a diferentes usos, não como algo fixo e descolado da realidade”

Especialmente em relação às duas áreas mais preocupantes quanto às lacunas cognitivas de aprendizado – língua portuguesa e matemática -, as especialistas destacaram pontos que devem ser considerados para a elaboração da Base Nacional Comum. De acordo com Delaine, o foco do ensino da língua portuguesa precisa estar no ensino de estratégias para resolver problemas comunicativos. “A língua portuguesa deve ser ensinada como um recurso que se adapta a diferentes usos, não como algo fixo e descolado da realidade. Um caminho para se ensinar os diversos usos da língua ao longo dos anos de ensino básico é organizar um currículo baseado no uso de textos variados, tanto os que circulam no cotidiano quanto os da literatura.” Sobre o hábito da leitura, a especialista aponta que o fenômeno dos best-sellers juvenis demonstra que uma boa parte dos jovens já é leitora. “É preciso apenas motivar seu interesse por outros estilos textuais. Para além de desenvolver a habilidade de leitura, uma base comum deve se preocupar em formar leitores de literatura – inclusive a clássica.”

Em relação à matemática, Maria Ignez destaca que tanto os jovens quanto seus professores e empregadores veem a matemática como um conhecimento para se aplicar em situações-problema. “Os jovens entendem como situações-problema tarefas simples exigidas no trabalho ou na faculdade, como aplicar descontos e ler planilhas. Em sua visão, elas deveriam ter sido ensinadas na escola e não foram e, portanto, falta-lhes repertório. Já o professores e empregadores entendem por situações-problemas tarefas novas e relativamente complexas propostas aos jovens, como controlar o próprio salário, argumentar a partir de dados quantitativos, usar raciocínio lógico e abstrato para esquematizar um problema e propor soluções. Para resolvê-las, os jovens deveriam ser capazes de selecionar e mobilizar conhecimentos ensinados na escola, ou seja, na perspectiva dos professores e empregadores, falta aos jovens mais do que um banco de conhecimentos. Falta-lhes uma grande competência que lhes permita articular teoria e prática por conta própria.”

Para a especialista, essa grande competência não se desenvolve naturalmente e precisa ser ensinada pela escola, por meio de uma série de etapas: identificar o problema; mobilizar as informações necessárias para entendê-lo e resolvê-lo; estabelecer uma estratégia de ação para solucioná-lo; aplicar essa estratégia; monitorá-la e tirar uma lição de todo esse processo (a consciência do aprendizado). “Se cada uma dessas etapas não é ensinada, o aluno pode fracassar por que não sabe que tipo de conhecimento precisa mobilizar em determinada situação. A resolução de problemas deve ser uma competência prevista na Base Nacional Comum como objetivo de todas as séries e com níveis de complexidade adequados a cada etapa da escolaridade. E precisa ser ensinada de forma intencional, não subentendida”.

Fonte: site porvir.org.
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