Tecnologia não é sinônimo de
progresso
Parar de pensar
acentua as desigualdades
Estou achando difícil ser um animal da espécie humana ultimamente,
quando meu vício profissional é pensar o tempo todo em como chegamos aqui:
somos fruto de uma sequência de oportunidades amplificadas exponencialmente por
um truque tecnológico, o pré-processamento do que comemos, que colocou mais
calorias em nossas bocas, mais neurônios em nosso cérebro, e mais tempo em
nossas mãos.
A história sobre como alcançamos a biologia que
temos, radicalmente transformada pela primeira tecnologia que nossos antepassados
criaram, que foi o uso de pedras lapidadas na forma de ferramentas para
modificar o que comiam, é a história da evolução biológica da nossa
espécie.
A história sobre como nos tornamos os humanos que
somos hoje é outra coisa: uma história de progresso.
Evolução é apenas mudança
ao longo do tempo, nem para pior, nem para melhor. Progresso, agora sim, é
mudança que melhora a situação: que traz mais possibilidades, que abre portas,
que gera complexidade que torna a vida mais interessante.
Na visão panorâmica da história da humanidade,
progresso tem sido o produto do uso de mais e mais novas tecnologias, que geram
oportunidades até então inexistentes e mudam a maneira de fazer e pensar.
Cordas e
machados, depois barro, cimento, concreto e aço transformaram onde vivemos;
barro, depois papel e tinta, e então computadores e agora a internet mudaram
como estendemos nossos pensamentos e memórias a repositórios externos que
podemos consultar à vontade.
Mas esse tempo todo, cabia a nós, humanos, pensar.
Juntar coisa com coisa e virar ideias na cabeça, com um problema em mente, até
elas fazerem sentido.
Usar a tecnologia não como um fim, mas como um meio.
As
tecnologias armazenavam e traziam informação —mas tornar informação em
conhecimento sempre dependeu de humanos usarem a tal informação para melhorar sua vida.
O progresso da humanidade não está simplesmente em dispor de mais informação,
mas em transformá-la em conhecimento, acumulado e mantido vivo conforme geração
após geração aprende a pensar, sintetizar, usar e transmitir.
Donde minha dificuldade, que vem de olhar ao redor e ver
minha espécie fazendo muita, mas muita força para automatizar e terceirizar a geração de
conhecimento, efetivamente
excluindo-se da história.
É sério que nós construímos toda uma riqueza de
conhecimentos e civilizações diferentes para então gerarmos uma maneira de tornar o cérebro e a
experiência humana... obsoletos?
Estou falando, é claro, da tecnologia dita "inteligência artificial" e do seu uso
para direcionar a experiência humana.
Já escrevi aqui que tecnologias que são
apenas algoritmos repetitivos, mesmo que produzam à força de muito treino algo
que é indistinguível de linguagem, não têm nada de inteligente, pois
inteligência é flexibilidade.
Tecnologias não são inteligentes; o uso que
fazemos delas é que pode ou não ser.
Mas pior do que confundir algoritmo e automação com
inteligência é pensar que todo e qualquer uso dessas tecnologias é inteligente
e inevitavelmente traz progresso. Não é, e não traz.
A história mostra que
automação, sozinha, só enche os bolsos da elite que detém o poder, enquanto
acentua a desigualdade.
Meu medo é que a humanidade, encantada com o
brinquedo novo, não nota que ele rouba suas oportunidades para parar, pensar, e
aprender, e se faz cada vez mais à mercê de uma elite pensante cada vez menor e
mais rica.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e
neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).