Está
claro que a colonização das Américas é muito mais antiga do que se pensava.
“É preciso um esforço brutal de imaginação para tentar
entender o significado da chegada dos primeiros Homo sapiens ao
pedaço de terra firme que, dezenas de milhares de anos mais tarde, seria
apelidado de continente americano. Nenhum ser humano chegou sequer perto de
passar por experiência parecida.” Assim começa o capítulo 1 do livro “1499”, de
Reinaldo Lopes.
Até o final do século 20 prevaleceu a ideia, chamada
teoria de Clovis, de que a chegada teria ocorrido em uma única vaga, uns 13 mil
anos atrás, através da Beríngia, língua de terra que então ligava a Sibéria ao
Alasca e se encontra agora submersa sob o estreito de Behring. As populações
nativas americanas seriam aparentadas aos povos siberianos, o que é comprovado
pela genética.
Mas a verdadeira história é muito mais rica. Não só
temos evidências de presença humana muito anterior, inclusive na América do
Sul, como também sabemos que o continente foi ocupado por outros povos com
características muito distintas.
Luzia, o fóssil humano mais antigo da América do Sul,
viveu há 11,5 mil anos. Ao final do século 20 suas feições foram reconstituídas
por computador, evidenciando para todos o que pesquisadores brasileiros haviam
percebido muito antes: a aparência de Luzia é muito mais próxima do padrão
africano, ou aborígene australiano, do que do tipo asiático dos povos nativos
brasileiros atuais. Outros fósseis encontrados, sobretudo, na região de Lagoa
Santa (MG) comprovam: os brasileiros mais antigos conhecidos eram “negros”.
Réplica do crânio de Luzia, fóssil mais antigo da
América, em 3D –
De onde veio o povo de Luzia, quando e como chegaram aqui, e
para onde foram? Foi aventado que teriam vindo da África ou da Oceania,
cruzando o Atlântico ou o Pacífico de barco, mas há outras explicações
possíveis. Sabemos que, à medida que se espalhavam pela Europa, Ásia e Oceania,
os diferentes grupos de Homo sapiens mantiveram por muito
tempo características originais africanas, antes de que as condições locais
impusessem diversificações. É possível que os primeiros que cruzaram a Beríngia
sejam dessa fase, e que a transição para o tipo asiático tenha ocorrido depois,
acentuada por novas migrações da Sibéria. Se foi assim, o povo de Luzia atual
somos nós.
Em todo caso, está agora claro que a colonização das
Américas é muito mais antiga do que se pensava. Artigo publicado no dia 22 de
julho na revista Nature apresenta evidências de presença humana na caverna
Chiquihuite, no norte do México, entre 26 e 19 mil anos atrás, sinalizando que
a ocupação humana da região pode remontar a 33 mil anos atrás.
Em outro artigo publicado na Nature no mesmo dia,
métodos de estatística bayesiana são usados para modelar o povoamento da
América do Norte. Os autores apontam que diferentes culturas emergiram
simultaneamente e observam que o fenômeno coincidiu com a extinção dos
fantásticos mamíferos gigantes que então povoavam as Américas.
Marcelo
Viana - diretor-geral do Instituto de
Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.
Fonte: coluna jornal FSP