Profecia de Kafka se manifesta hoje nos bancos e companhias aéreas


Profecia de Kafka se manifesta hoje nos bancos e companhias aéreas

É na organização e sistematização que a burocracia goza enquanto você agoniza.

Kafka e suas profecias sobre o mundo nascente da burocracia moderna são conhecidas. 

Burocracia é um sistema criado para, supostamente, servir as pessoas, mas, que, na verdade, existe para proteger o Estado e as empresas das pessoas. 

A função primária da burocracia é fazer você invisível e irrelevante. E fazer daqueles que têm poder sobre você inacessíveis e inimputáveis.

Processos que caem na sua cama, burocratas de um castelo que ninguém alcança, execuções sem justificativa, mensagens que chegam a lugar nenhum, insetos humanos cujo principal temor é perder o emprego, enfim, o universo kafkiano é caracterizado por personagens que vagam por um mundo que os esmaga, mas com quem eles não podem se comunicar. Faz de você um inseto mudo.

Os incautos sempre acharam que a alma da modernidade era o progresso técnico. Não, esse é seu fetiche. 

Seu verdadeiro coração, o lugar em que ela goza orgasmos infinitos, é a burocracia.

Vejamos alguns exemplos de profecias kafkianas realizadas na burocracia do nosso cotidiano. 

Vale lembrar que o espírito do mundo de Kafka é um mundo em que você não tem com quem falar, em que ninguém sabe propriamente nada. Logo, ninguém tem como te oferecer sentido para nada.

Mas este mundo, ao mesmo tempo, é organizado e sistêmico, cobrindo a realidade com o manto da esquizofrenia social moderna. 

Uma prisão a céu aberto. É na organização e sistematização que a burocracia respira e goza enquanto você agoniza.

Banking é uma das áreas mais kafkianas do mundo contemporâneo. 

Gerentes que mudam como se fossem fantasmas com uniforme cuja função na maioria dos casos é enrolar o cliente —exceções honrosas são espécies em extinção. 

Os grandes bancos simplesmente não estão nem aí pra você, apensar do marketing feliz.

Não há com quem falar, e quando procuram você é porque alguém no atendimento quer ganhar pontos para sua carreira. Você é nulo. Todo o mercado financeiro hoje é uma farsa.

O atendimento ao cliente é uma mentira. E só vai piorar porque as pessoas contam cada vez menos no mundo do capital financeiro. 

Quem conta é quem tem muito dinheiro. O serviço bancário pequeno está em extinção.

Empresas de infraestrutura como luz, água, telefone, internet, e afins, são outro nicho kafkiano. Você fica sem luz, sem água, sem internet dias e não tem com quem falar. 

Se algum erro acontece, você clama no deserto. Profissionais mal treinados e ressentidos maltratam você e te enrolam. Um rato de Kafka atende você, mesmo que seja digital.

Há uma pedagogia para idiotas nisso tudo. Essas empresas prometem um paraíso digital que na realidade não existe nem para millennials treinados.

Deve-se reconhecer que no Brasil há um agravante: o país é feito de golpistas, ladrões e oportunistas. 

Isso obriga, principalmente os bancos, a criar infinitos passos de segurança que só atrapalham a vida do cliente e protegem o banco das próprias infelicidades que podem se abater sobre o cliente.

Um millennial treinado nos fetiches digitais também sofre, ao contrário do que se vende por aí. 

O aplicativo nunca é tão eficiente, são inúmeros passos, senhas, SMS com códigos que caducam e você terá que repetir os passos todos de novo, e, ao fim, a chance de você ter que falar com um daqueles gerentes ausentes e inconsistentes é enorme. 

E aí, espere dias para ele responder suas mensagens. O digital é blasé.

Outro segmento kafkiano é o mundo das companhias aéreas. 

Qualquer intercorrência —que pode, de fato, ter ocorrido a revelia de qualquer "culpa" da empresa— fará o cliente ficar como uma barata correndo de um lado para o outro no aeroporto. 

A companhia pode simplesmente cancelar seu voo, dizer que foi por motivos operacionais, e dane-se sua conexão, seu compromisso, seus planos.

E você não pode fazer nada. 

Pode berrar com a funcionária —ou colaboradora, como os picaretas de recursos hoje falam—, ela te repetirá frases automáticas porque ela nem está te vendo de fato, e você acabará com cara de quem gosta de barraco. 

Ficará ali, como um cão de rua, abandonado, humilhado, pronto para o abate.

LUIZ FELIPE PONDÉ - escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e "Política no Cotidiano". É doutor em filosofia pela USP.

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