É
preciso ter coragem de dizer 'não' à barbárie.
Na semana passada, assisti ao documentário “O que Sophia Loren
faria?”.
Durante 32 minutos, mergulhei na história de Nancy Kulik, uma divertida
ítalo-americana de 82 anos.
Logo no início, quando a filha pede que ela prove
uma massa sem glúten, a professora aposentada responde com uma pergunta: “O que
Sophia Loren faria?”.
Descobri que a diva do cinema italiano, de 86 anos, é a
musa inspiradora que guia todas as decisões da moradora de Nova Jersey,
inclusive nos momentos mais trágicos da sua vida (não vou dar spoiler).
Imediatamente me perguntei: Quem é a minha musa inspiradora?
Foi fácil chegar à resposta: Fernanda Montenegro.
Na minha pesquisa, quando perguntei “Dê um exemplo de uma mulher
que envelheceu bem”, Fernanda Montenegro apareceu em primeiríssimo lugar.
A
grande dama da dramaturgia brasileira foi citada como exemplo de coragem,
força, potência, beleza, equilíbrio, serenidade, coerência, caráter, dignidade,
sabedoria, talento, inteligência, generosidade e muito mais.
Aos 91 anos —92 em 16 de outubro— , Fernanda Montenegro continua
lutando corajosamente pela liberdade e democracia no Brasil, e exercendo com
plenitude e beleza o seu ofício e vocação.
“Ninguém ou sistema nenhum vai nos calar”, disse corajosamente em defesa da
liberdade de expressão.
“Só há uma cultura que constrói um país: é a cultura da
liberdade. A cultura liberta, cria a alma de uma nação”.
Apesar do “cala a boca” que o povo brasileiro
sofre, Fernanda Montenegro tem esperança: “Das cinzas, vamos renascer!”.
“O incêndio na nossa Cinemateca Brasileira em São Paulo é uma
tragédia anunciada. Toda a nossa cultura das artes sofre um ‘cala a boca’ neste
momento.
Mas vamos renascer, tenho certeza. Das cinzas, vamos renascer. É
sagrado o eterno retorno”.
Em meio à tragédia anunciada que o Brasil vive, recebi o pedido
de um jornalista:
“Você pode fazer um videozinho de cinco minutinhos para explicar
por que tantos brasileiros se identificam com fascistas genocidas que estão
incendiando e destruindo o Brasil?
Por que apoiam sádicos odientos que
sabotaram as vacinas e defenderam que os velhos e fracos têm que morrer?
Por
que são cúmplices de psicopatas asquerosos que estão provocando uma guerra
civil para tirar o foco das denúncias de corrupção e acobertar seus crimes hediondos?”
Quase respondi: “Estou deprimida, desesperada e desesperançada.
É melhor você procurar alguém que ainda tenha esperança no Brasil”.
Mas, antes de responder, me perguntei: “O que Fernanda
Montenegro faria?”
Será que ela diria que está muito triste, angustiada e apavorada
com a tragédia brasileira, e que se sente impotente para responder a questões
tão complexas?
E que, mesmo que tentasse explicar o sadismo e fanatismo dos
fascistas, precisaria de mais do que cinco minutinhos?
Ou será que ela aceitaria? E toparia fazer um primeiro Zoom para
checar se entendeu o conceito do projeto? Um segundo Zoom para verificar o som
e a luz? Um terceiro Zoom porque a internet caiu no meio do segundo Zoom?
Lembrei então do depoimento de uma professora, de 65 anos, que está
no meu livro "A Invenção de uma Bela Velhice":
“A Marília Pêra recusou um projeto importante e uma jovem atriz
disse: ‘Lógico que você pode dizer não, você é a Marília Pêra!’. Ela respondeu:
‘É exatamente o contrário. Eu só sou a Marília Pêra porque aprendi a dizer
não’”.
Cheguei à conclusão de que se perguntassem à Fernanda
Montenegro: “Faz esse favorzinho pra gente, são só cinco minutinhos?”, ela
responderia simplesmente: “Não”. E se insistissem: “O que custa?”, diria com
elegância: “Custa meu tempo, meu bem mais precioso”.
Será que Arlette Pinheiro Monteiro Torres só se tornou a
Fernanda Montenegro porque tem a coragem de dizer não?
MIRIAN GOLDENBERG - Antropóloga
e professora da Universidade Federal do Rio, é autora de "A Bela
Velhice".