Canto
dos animais acabou alterado por lockdown e menor barulho urbano.
Como tantas outras cidades, São Francisco, na
Califórnia, parou, na tentativa de conter o vírus. E como em outras cidades, a
natureza voltou a ouvir e ser ouvida. A diferença é que no caso dos pássaros de
São Francisco, temos, das cenas dignas de distopia de ficção científica, mais
do que uma impressão, relatos isolados, ou vídeos ocasionais compartilhados na
internet, sempre de origem duvidosa.
Elizabeth Derryberry, da Universidade do Tennessee em
Knoxville, e seus colegas em três outros estados dos EUA, vinham há anos
estudando diferenças entre o canto de pássaros em áreas urbanas e rurais nos
arredores de São Francisco.
Até que, durante o lockdown, entre abril e junho de
2020, o tráfego caiu drasticamente na cidade, para números que não se
observavam desde os anos 1950, e a poluição sonora urbana caiu para o mesmo
nível encontrado nas redondezas rurais. Os pesquisadores abraçaram a
oportunidade de comparar o canto de pássaros nas ruas vazias com seus registros
feitos nos mesmos locais no mesmo período em 2015, com ruas cheias e
barulhentas como era de costume.
Teriam os pássaros notado a diferença, ou continuariam
cantando da mesma forma, agora apenas mais fáceis de serem escutados?
Ah, eles certamente notaram. Em artigo de rara beleza
por sua simplicidade, pouco usual na revista Science, os pesquisadores mostram
que o canto dos pássaros nas áreas rurais permaneceu o mesmo – mas a diferença
nas áreas urbanas foi gritante.
Durante o lockdown, os pássaros urbanos passaram a
cantar mais suavemente, em tons mais graves, com muito mais variação de voz.
Sem o zum-zum da cidade para abafá-lo, e graças aos tons mais graves, seu canto
não só ia mais longe, como também voltou a ser mais complexo, mais cheio de
conteúdo. Durante a pandemia, os pássaros urbanos voltaram a cantar como seus
primos rurais.
Minha parte favorita do estudo é que a diferença
aconteceu tão rapidamente, em uma única geração, que não há como se apelar a
algum argumento evolucionário, obra de alguma seleção natural e fruto de algum
“benefício adaptativo”. A alternativa mais provável é muito mais simples e
elegante: os pássaros finalmente puderam voltar a se ouvir —e ajustaram suas
vozes.
Exatamente como humanos, tentando conversar num
restaurante barulhento, descobrem que precisam falar mais alto, fino e simples
para serem ouvidos pelo vizinho —e então apreciam o alívio da música alta
subitamente parar, e voltam a conversar normalmente. Os passarinhos também se
ouvem.
E com ou sem nós, a vida se auto-organiza.
Suzana
Herculano-Houzel - bióloga e neurocientista da
Universidade Vanderbilt (EUA).
Fonte:
coluna jornal FSP