O homem que enpurrou uma
passageira nos trolhos do metrô, desnuda o momento pertubador vivido pelo
Brasil.
De repente, o taxista
aumentou o som da pequena TV acoplada no console do carro. No banco de trás, eu
parei de ler e afinei os ouvidos. Era meio-dia da sexta-feira de Carnaval
(28/2). O homem que, dias antes, havia empurrado uma passageira nos trilhos do
metrô de São Paulo tinha sido preso. A mulher teve o braço amputado. O agressor
sofre de esquizofrenia, destacou o apresentador de TV. “Louco”, decodificou de
imediato o taxista. Doença triste, disse o apresentador na TV. Ao ser preso,
continuou o apresentador, o agressor afirmou que a empurrou porque sentiu
raiva. Essa parte o taxista não escutou. Algo lá fora o havia perturbado. Colou
a mão na buzina, abriu a janela do carro e xingou o motorista ao lado, que
tentava mudar de pista. Perdigotos saltavam da sua boca enquanto ele empunhava
o dedo médio com uma mão que deveria estar no volante. Fechou a janela, para
não perder a temperatura do ar-condicionado, e voltou a falar comigo. “A
polícia tem de tirar os loucos da rua”. A quem ele se refere, pensei eu,
confusa, olhando para fora, para dentro. Era ao louco do metrô.
Há algo de trágico nos
loucos. E não apenas o que é definido como loucura nessa época histórica. Há
uma outra tragédia, que é a de não ser escutado. Sempre que alguém com um
diagnóstico de doença mental comete um crime, a patologia é usada para anular
as interrogações e esvaziar o discurso de sentido. A pessoa não é mais uma
pessoa, com história e circunstâncias, na qual a doença é uma circunstância e
uma parte da história, jamais o todo. A pessoa deixa de ser uma pessoa para ser
uma doença. Se há um histórico, é o de sua ficha médica, marcada por
internações e medicamentos – ou a falta de um e de outro. Esvaziada de sua
humanidade, o que diz é automaticamente descartado como sem substância. A
doença mental, ao substituir a pessoa, explica também o crime. E, se não há
sujeito, não é preciso nem pensar sobre os significados do crime, nem sobre o
que diz aquele que o cometeu.
Mas o que essa escolha –
a de reduzir uma pessoa a uma patologia e a de anular os sentidos do seu
discurso – diz da sociedade na qual foi forjado esse modo de olhar? Se
Alessandro de Souza Xavier, 33 anos, o homem que na terça-feira (25/2) empurrou
Maria da Conceição Oliveira, 28, no metrô, for escutado, há algo de
particularmente perturbador na justificativa que confere ao seu ato. Alessandro
diz: “Fizeram um mal pra mim, e eu descontei. Fiz porque estava nervoso com o
pessoal do mundo.”
O louco não
expressa apenas a sua loucura. Ele também denuncia a insanidade da sociedade em
que vive
O que há de
particularmente perturbador nessa fala é que, quando escutada, ela desnuda o
atual momento do Brasil. Vale a pena lembrar que o louco é também aquele que
diz explicitamente do seu mundo. Sem mediações, ao dizê-lo ele pode sacrificar
a vida de outros, assim como a sua. Vale a pena lembrar ainda que o louco não
expressa apenas a sua loucura. Ele denuncia também a insanidade da sociedade em
que vive.
Ao interrogar sobre os
sentidos do que Alessandro diz, quando explica por que empurrou Maria, é
necessário olhar para os outros crimes que viraram notícia nos últimos dias.
Nenhum deles, até agora, relacionado a doenças mentais. Torcedores do São Paulo
bateram com barras de ferro em um torcedor do Santos que esperava o ônibus.
Bateram nele até matá-lo. Ao deparar-se com blocos de Carnaval interrompendo o
trânsito, na Vila Madalena, bairro de classe média de São Paulo, um homem
acelerou o carro e feriu dez pessoas. Quem estava perto o arrancou do veículo e
passou a agredi-lo. Quando ele conseguiu fugir, destruíram o carro. Um casal de
lésbicas foi espancado ao sair de um bloco de Carnaval, no Rio. Uma delas teve
a roupa arrancada. Apenas uma pessoa na multidão ao redor tentou ajudá-las. Em
Franca, no interior de São Paulo, um adolescente correu atrás de um suspeito de
assalto e lhe aplicou um golpe chamado de “mata-leão” (estrangulamento). O
suspeito, de 22 anos, teve um infarto após ser imobilizado e morreu no
hospital. Um morador de rua foi linchado em Sorocaba (SP) por ter pegado um
xampu de um supermercado. Teve afundamento do crânio. No Rio, mais um
adolescente foi amarrado e agredido depois de furtar um celular. Linchamentos
eclodiram em todo o país depois do caso do garoto acorrentado com uma trava de bicicleta no Flamengo.
Nas semanas anteriores, dois manifestantes acenderam um rojão num protesto no
Rio, matando um cinegrafista. Na Baixada Fluminense, um homem executou um
suspeito de assalto com três tiros, em plena rua, durante o dia, assistido por
vários. Mais de 40 ônibus foram incendiados em São Paulo em 2014.
A lucidez do
louco é a de não vestir como razão a nudez do seu ódio – ou do seu medo
O discurso do louco é
encarado como uma afirmação (e confirmação) da sua loucura, o que é outra forma
de não escutá-lo. No caso de Alessandro, uma das provas da loucura do louco
teria sido ele dizer que jogou Maria nos trilhos do metrô por raiva e também
por vingança. Explícito assim. Outra prova da loucura do louco revelou-se ao
afirmar que não a conhecia, que a escolheu de forma aleatória. “Desconexo” –
foi o adjetivo usado para definir o discurso de Alessandro. Sua vítima não era
torcedora do Santos, não era lésbica, não tinha furtado um celular ou um xampu,
as desrazões interpretadas como razões. Por que, então? O louco confessou:
Maria não era Maria, já que não a conhecia nem sabia o seu nome, mas o “pessoal
do mundo”. A lucidez do louco talvez seja a de não vestir como razão a nudez do
seu ódio – ou a nudez do seu medo. Por isso também é louco.
Diante da violência que
irrompe no Brasil em todos os espaços, talvez seja a hora de escutar o louco.
Talvez o fato de ele atacar no metrô não seja um detalhe descartável, uma
coincidência destituída de significado. No mesmo dia em que Alessandro foi
preso, morreu no hospital Nivanilde de Silva Souza, aos 38 anos. No mesmo dia
em que, na Estação da Sé, Alessandro empurrou Maria, na Estação da Luz um trem
atingiu a cabeça de Nivanilde. Ela tinha dito a um estagiário da Companhia
Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) que estava grávida, o que lhe
assegurava o direito a entrar no vagão especial. O estagiário disse a ela que
teria de apresentar um documento comprovando a gestação. Os dois teriam se
empurrado, seguranças deram voz de prisão à Nivanilde. Na confusão, ela teria
caído na plataforma. O trem bateu na sua cabeça.
No início de fevereiro,
a linha-3 vermelha do metrô parou por cinco horas depois da falha em uma porta na
estação da Sé, a mesma em que Alessandro empurrou Maria. No verão paulistano
mais quente desde 1943, o ar-condicionado foi desligado. Pessoas vagavam pelos
túneis, algumas desmaiaram, grávidas e velhos esperaram dentro de vagões
abafados por horas. Pelo menos 19 dos 40 trens que circulavam na linha foram
depredados.
O outro,
qualquer outro, tornou-se inimigo e competidor por um lugar no trem que nos
engole e nos cospe em seu vaivém automático
Os protestos de junho de
2013 começaram por causa das tarifas do transporte público, em São Paulo os 20
centavos de aumento da passagem. Naquele momento, milhares romperam o
imobilismo, no concreto e no simbólico, e passaram a andar por cidades em que
não se andava, vidas consumidas em ônibus e metrôs superlotados. O aumento de
20 centavos foi cancelado, mas o péssimo transporte público continuou
mastigando o tempo, desumanizando gente. Basta parar para esperar o trem nos
horários de pico para ser empurrado, xingado, odiado. O outro, qualquer outro,
tornou-se nosso inimigo e nosso competidor por um lugar no trem que nos engole
e nos cospe em seu vaivém automático. Somos passageiros que não passam, e a
tensão dessa impossibilidade cotidiana pode ser apalpada. A violência é gestada
como uma promessa para o segundo seguinte.
Então o louco vai lá e
empurra a mulher sobre os trilhos. Rompe o imobilismo e empurra aquela que
espera. Porque é louco. Caso isolado, nenhuma conexão com nada, desconexo é o
seu discurso, fora da história é o seu gesto, a insanidade é só dele. Basta eliminá-lo,
tirá-lo de circulação, para que a sociedade brasileira volte a ser sã. E o
metrô de São Paulo um espaço de convivência agradável e pacífico, marcado pela
cordialidade.
Talvez estejamos todos
não loucos, mas no lugar do louco. Já não nos subjetivamos, tudo é literal. Nos
mínimos atos do cotidiano nos falta a palavra que pode mediar a ação,
interromper o gesto de violência antes que se complete. Mas talvez estejamos no
lugar do louco especialmente porque nem escutamos, nem somos escutados. E quem não
é escutado vai perdendo a capacidade de dizer. Só resta então a violência.
Reprimir os
protestos é uma forma brutal de não escutar o que dizem aqueles que ainda se
preocupam em dizer
Os protestos iniciados
em junho pelos 20 centavos e agora centrados na Copa do Mundo são um dizer.
Responder a eles com repressão – seja da polícia no espaço público, seja em
projetos de lei que transformam manifestantes em terroristas, seja anunciando
que o Exército vai para as ruas em tempos de democracia – é uma forma brutal de
não escutar aqueles que ainda se preocupam em dizer. É talvez a maior violência
de todas.
É preciso ser muito
surdo para acreditar que prender todos, “deter para averiguação”, criminalizar
manifestantes é suficiente para voltarmos a ser o Brasil cordial e contente que
nunca existiu, 200 milhões em ação torcendo pela seleção canarinha. Que o dizer
de quem deseja um Brasil diferente seja hoje expressado no campo simbólico do
futebol é mais uma razão para escutá-lo, ao mostrar que estamos diante de novas
construções do imaginário.
Escutem o louco. Para
não colocar aqueles que protestam no lugar do louco, no lugar daquele que não é
escutado porque não teria nada a dizer. E depois surpreenderem-se com a
resposta violenta, convencendo-se de que não têm nada a ver com isso.
Eliane Brum -
escritora, repórter e documentarista; autora dos livros de não ficçãoColuna
Prestes, o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua
e A Menina Quebrada e do romance Uma Duas.
Fonte: site controversia