Apple e o paradoxo da privacidade
A
quem pertence a galeria de fotos do seu celular, à Apple ou a você?
Em junho de 2019, a Apple colocou um outdoor
gigante em um prédio de Las Vegas com os seguintes dizeres: “What Happens on
Your iPhone, Stays on Your iPhone” (o que acontece no seu iPhone fica no seu
iPhone).
O anúncio indicava um compromisso da empresa com
a proteção da privacidade e dos dados dos seus clientes.
A julgar pelos acontecimentos dos últimos dias, a empresa talvez fizesse melhor
comprando um outdoor com o poema-clichê de Camões: “Mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança”.
Pois bem, a Apple mudou no que diz respeito ao seu
compromisso com a privacidade.
A big tech anunciou um
bizarro projeto que, na superfície, teria por objetivo combater material contendo abuso
sexual contra crianças (o que a empresa batizou de CSAM).
A
empresa criou um sistema que irá monitorar, escanear e analisar de forma
permanente todas as fotos salvas nos iPhones, nos iPads e nos Macs. Se o
sistema detectar fotos suspeitas, a empresa notificará automaticamente as
autoridades.
O combate a conteúdo com abuso infantil é essencial e deve ser
implacável. Nesse sentido, a intenção da empresa pode até ser boa.
Só que, ao
fazer isso, ela destrói por completo a linha do que é espaço digital privado e
o que é espaço digital público. Afinal, a quem pertence a galeria de fotos do
seu celular, à Apple ou a você?
O sistema da Apple amplia a impressão de que os donos dos
produtos da empresa não são realmente donos.
São uma espécie de “hóspedes” da
empresa, sujeitos a regras de conduta, presentes ou futuras, infinitamente
mutáveis e, sobretudo, à vigilância permanente.
A medida gerou furor entre pesquisadores de segurança da
informação e entidades de defesa da privacidade.
Por exemplo, a organização
Electronic Frontier Foundation afirmou: “É impossível construir um sistema de
escaneamento que seja usado somente para imagens com conteúdo sexual.
Como
consequência, mesmo um sistema bem-intencionado abrirá a porta para abusos
maiores”.
O Centro de Democracia e Tecnologia (CDT), por sua vez, disse
que o sistema “marca um desvio significativo da Apple com relação à questão da
privacidade e protocolos de segurança”.
É uma pena. A empresa vinha dando passos no sentido da dar maior
controle para seus usuários com relação aos seus dados e à inviolabilidade dos
seus produtos.
Nesse sentido, a medida tomada agora é paradoxal até com o
marketing da empresa.
Vale lembrar que os iPhones vêm sendo vítimas de programas de
espionagem como o software Pegasus.
Esses programas —sem a necessidade de
nenhum clique— permitem que atacantes invadam completamente o celular da
vítima, conferindo inclusive acesso a seus dados e mensagens.
Escancarar ainda
mais as brechas do aparelho, em vez de fechar as existentes, acaba funcionado
como mais um tijolo nesse paradoxo.
A empresa dificilmente vai conseguir servir a dois objetivos
simultaneamente. De um lado, criar um produto seguro, algo cada vez mais
desejado em face a ciberataques crescentes.
E, de outro, criar sistemas de
vigilância e controle sobre seus próprios produtos. São carros tentando viajar
em direção oposta na mesma via. O resultado é de novo Camões: “Mudam-se os
tempos, muda-se a confiança”.
RONALDO LEMOS - Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio de Janeiro.