'Você chove aqui, você
não chove ali'
Tá pensando que é só a presidente
que se esforça para dizer pérolas do quilate de "diuturna e
noturnamente"? Pode tirar o cavalinho da chuva. Como ocorre na estúpida
disputa entre petistas e não petistas pela taça da boçalidade nas demonstrações
de ódio, ignorância e selvageria, a coisa também é braba na produção de pérolas
linguísticas.
No último texto, mencionei o
uso exagerado e, por isso mesmo, enfadonho do pronome "você" como
generalizador, indefinidor, indeterminador, que se vê neste exemplo do
"Houaiss": "Se você não paga a conta, eles cortam o
fornecimento".
Repito: o problema não está no
uso em si, que, como se acaba de ver, é documentado. O problema está no uso
repetitivíssimo, que, como tudo na vida, causa náuseas. Além disso, deve-se
levar em conta o fato de que muitas vezes o falante usa esse "você"
em situações em que o agente do processo nem de longe é indefinido ou
indeterminado. No fim, a coisa tem mesmo é cheiro de embuste, disfarce ou coisa
pior.
Repito o exemplo da semana
passada: "Se você perde o grau de investimento, você corre o risco de uma
debandada dos capitais estrangeiros, aí você precisa tomar medidas mais
drásticas do que você desejaria tomar". O caro leitor teria alguma dúvida
para identificar os seres representados por cada um dos "vocês"?
Parece que emitir a frase dura, nua e crua é perigoso...
Vamos tirar a carapuça do
emissor da pérola: "Se nós perdermos o grau de investimento, correremos o
risco de uma debandada de capitais estrangeiros, aí precisaremos tomar medidas
mais drásticas do que as que desejamos tomar". Esse "nós"
obviamente inclui o emissor da frase, alta figura do governo federal de turno.
Em vez de "nós",
seria possível usar algo como "o Brasil", "o país", "o
governo", mas isso pode aumentar a percepção do ouvinte e fazê-lo
"enxergar" de vez qual é o verdadeiro agente do processo...
O caro leitor certamente notou
que a eliminação da carapuça não se restringiu à troca de "você" pelo
agente determinado; passou, também, pela troca do vaselínico futuro do pretérito
("desejaríamos") pelo presente do indicativo ("desejamos").
Há figuras que abusam tanto do
"você", "você", "você" (não usam "eu"
ou "nós" nunca de nunca!) que chegam a criar verdadeiras bizarrices.
Dia desses, ao falar pela enésima vez sobre a "crise hídrica",
altíssima autoridade do governo paulista disparou esta maravilha, ao explicar a
diferença entre os níveis das diversas represas que abastecem a Grande São
Paulo: "Você chove aqui, você não chove ali...". Genial! O cacoete é
tão forte que o cidadão usa todos os verbos com o sujeito "você". E
dá-lhe você, você, você!
Em 1995, a Fuvest pediu aos
candidatos que relacionassem uma imagem e alguns textos e escrevessem "uma
dissertação em prosa, discutindo as ideias neles contidas...". A imagem
era de um famoso quadro de Andy Warhol, em que se veem 25 reproduções de uma
imagem de Marilyn Monroe. Um dos textos era do grande filósofo alemão Theodor
Adorno: "Em muitas pessoas já é um descaramento dizerem eu".
No caso da Fuvest, os
candidatos tinham de discutir sobre a anulação do "eu", da
identidade, perdida em tempos em que a maioria das pessoas pertence a no mínimo
um bando, qualquer que seja. No caso que abordei hoje, a questão é um pouco
diferente, já que os exemplos mostram que não se trata propriamente da perda da
identidade, do "eu", mas da sua viciada ocultação, às vezes
intencional, covarde. É isso.
Pasquale Cipro Neto:
professor de português, é idealizador do programa “Língua Portuguesa”, autor de
obras didáticas e paradidáticas.
Fonte: coluna FSP
Nivaldo Cândido de Oliveira Júnior
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