A leveza da sobriedade


A leveza da sobriedade

Certas memórias são boas para dar valor a esses dias em que consigo apreciar a dança calma dos pingos de chuva

Caíam pingos demorados sobre aquela poça d’água. Os movimentos circulares e o reflexo das árvores me fizeram lembrar da minha avó. 

Ela adorava quando a chuva já estava por terminar e fazia aquela dança. "Olha só, Alice, parece uma pintura."

Ela era portuguesa e viveu até quase cem anos. Gostava de coisas simples como um pastel e um chope. Um chope só, nunca vi nem sombra dela bêbada. Nos últimos anos, antes de dormir, ela tomava um cálice de vinho do Porto. Dizia que era recomendação do geriatra.

Nos últimos anos de sua vida, toda noite eu ia dormir na casa dela. Já estava em sobriedade, e portanto não havia perigo em ser eu a encarregada de cuidar dela. 

Muito diferente de quando eu estava na ativa e sempre encontrava uma desculpa para poder visitá-la e virar qualquer bebida que encontrasse no bar da sala.

Com minha doença já muito avançada, eu não bebia na frente das outras pessoas, minha família ficava na vigília. Era desesperador querer entornar uma e não poder.

 Passava o dia pensando em que momento eu iria encontrar uma brecha para beber. Um pesadelo!

Uma tarde, ainda na ativa, fui visitar minha avó. Como chovia bastante, fiquei presa lá. "Alice, por favor, não vá me aprontar nada", foi o áudio que minha mãe deixou. 

Não pensei nem duas vezes quando me dei conta de que estava no paraíso. Um apartamento com bebida só para mim, pois a dona era uma senhora que não conseguia andar.

Naquela tarde virei duas garrafas de vinho, mais algumas outras miniaturas, daquelas que as pessoas ganham em viagem. Sabe aqueles mimos? Pois é, tracei todos. 

A chuva não dava trégua e eu agradecia a cada entornada. Chorei profundamente depois que me vi sem saída. 

Minha avó, num desses milagres que agradecemos aos deuses bêbados, dormiu profundamente aquela tarde. Também dormi depois de tudo— digo, apaguei. 

Acordei com o rosto da minha mãe me encarando. Cara de choro, raiva e desgosto.

Essas lembranças são boas para dar valor a esses dias em que consigo olhar para uma poça d'água e identifico a dança calma que os pingos de um chuvisco proporcionam. 

Ficar bêbada a ponto de tudo girar e não conseguir nem entender o que é céu e o que é chão não tem a mínima graça.

Agora, enquanto escrevo, chove muito. Tenho a sobriedade de conseguir ler um jornal. Leio que uma pesquisa recente anunciou que não há mais doses seguras para o consumo do álcool. 

Lembro da "receita" dos cálices de vinho do Porto da vovó. Tudo muda, o tempo todo. Ainda bem!

 ALICE S. – blog Vida de alcoólatra

 

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