Em 2018, Jorge Paulo Lemann participou
de um seminário nos EUA cujo título era "Estratégia e Liderança em
tempos de disrupção". O que ele disse ali é a pista principal para
entender o que viria a acontecer com suas empresas em seguida.
A apresentação do seminário dizia:
-Daqui pra frente, organizações
bem-sucedidas em qualquer setor serão aquelas capazes de transformar em lucro,
as atuais mudanças em tecnologia, hábitos de consumo, competição e força de
trabalho.
Como desenvolver estratégias para
isso? Como utilizar habilidades em data analytics em novos modelos de
negócios? Estratégias bem-sucedidas no passado continuarão a funcionar nos
próximos anos?.
Curiosamente,
essas são as mesmíssimas perguntas que os líderes das empresas de saúde têm que
responder hoje.
- A fala de Lemann começa
aos10minutos no vídeo cujo link está no final deste artigo. Assista quando
terminar a leitura.
Com base no que Lemann disse (já vou
contar), no que está acontecendo hoje com a LOJAS AMERICANAS, e nas dúvidas que
surgem sobre outras empresas do mesmo grupo (o 3G CAPITAL), o que afirmo é o
seguinte:
-O
padrão dos acontecimentos que estão derrubando a credibilidade e os negócios
de Jorge Paulo Lemann, origina-se nas mesmas forças que
ameaçam vários dos grandes players atuais da saúde privada.
-A tese é esta: o caso AMERICANAS é
um exemplo do que pode acontecer quando o "sistema
operacional" de uma empresa fica incompatível com o que é
necessário para sustentar seu crescimento e lucratividade.
"Sistema operacional" é a
cultura da empresa, seu DNA: mentalidade, atitudes que valoriza, perfil das
pessoas que contrata, ênfases que prioriza, estilo da gestão...
É o "sistema operacional"
que define o que uma empresa é capaz ou não de fazer.
A história das empresas de sucesso
não é a história de empresas que "duram", mas de empresas que
conseguem se transmutar.
O quase colapso da FORD Motor Company
nos anos 1920, após ter se tornado o maior sucesso empresarial que se conhece,
reflete precisamente o padrão que identificamos no caso 3G/AMERICANAS.
O sucesso da General Motors, a partir
da mesma época, e seu subsequente reinado durante 70 anos até ser desbancada
pela mentalidade japonesa de produção, é também parte do mesmo
padrão.
As coisas vão bem até que deixam de
ir bem.
Há dezenas e dezenas de casos
análogos. Dou referências no final.
O que leva uma empresa à decadência é
sempre explicável por uma das variantes abaixo:
O
3G/AMERICANAS está vivendo o cenário "o mercado está
abandonando a empresa".
Antes do colossal buraco contábil
descoberto na AMERICANAS, já havia um "buraco mercadológico" entre a
empresa e os mercados consumidores de seus produtos.
O descasamento entre o
"dentro" (seu "sistema operacional") e o "fora"
(mercado consumidor), é o que os está empurrando para a decadência.
-Este artigo é minha interpretação do
que está acontecendo com a LOJAS AMERICANAS, e é também o registro de uma
aposta. Ei-la:
Na
saúde privada, as empresas que têm liderado o setor há décadas, vão entrar em
crise e muitas vão virar pó. Modelos alternativos começam a aparecer no
horizonte.
-Na sequência explico a lógica dessa
afirmação, e também o que há em comum entre empresas de setores tão diferentes
como as do 3G CAPITAL, e gigantes da saúde-como D'OR e DASA .Você verá que
elas têm tudo em comum.
-Tenho a pretensão de explicar tecnicamente o
que está acontecendo, evitando exortações moralizantes.
-Como é do meu estilo, dou nome
aos bois; e, como também é do meu estilo, não recomendo ou aconselho nada,
apenas digo em quais empresas de saúde investiria meu dinheiro por um prazo de
10 anos, a partir de hoje. Arriscar o dinheiro da gente, "fala".
Exortação não "fala".
Dividi este artigo em duas partes. Na
primeira, analiso o caso AMERICANAS/3G à luz de fundamentos da gestão,
preparando o caminho para entrar no universo da saúde, o que faço na parte II.
Vocês me conhecem...Sabem que adoro
dar uma aulinha. Vamos nessa?
-PARTE I-
O que Lemann disse naquele seminário
em 2018?
-Ele começou definindo-se como um
"dinossauro amedrontado" ("a terrified dinosaur").
Já tinha 78 anos, e os temas daquele seminário lhe eram estranhos. Nada do que
estavam apresentando como indispensável para a sobrevivência dos negócios tinha
a ver com o que lhe trouxera fama e fortuna. Seu grupo nada sabia sobre
as abordagens centradas em dados, que lhes permitiriam, talvez,
responder à novas demandas que surgiam nos negócios do grupo. Inteligência
de dados- data analytics, algorítmos, inteligência artificial... , essas
coisas... Não entendiam nem se prepararam para a transformação
digital. Nunca foram pessoas de marketing, eram caras de finanças ("finance
guys", como ele diz).
Na época, o tônus muscular dos
seus negócios já dava sinais de enfraquecimento, apresentando problemas no
faturamento, lucro, e valor de mercado.
Notando que o "sistema
operacional" do 3G estava ultrapassado, Lemann disse estar
batalhando para atualiza-lo. Declarou que em sua vida profissional já tinha
conseguido mudar radicalmente antes, e iria mudar de novo.
Foi aplaudido pelos participantes.
Vale a pena assistir o vídeo.
Cinco
anos depois, ao que parece, ainda não existe um sistema operacional "3G
versão 2.0".
Como os sinais de decadência do grupo
estão sendo interpretados?
Experts atribuem a derrocada a
pecados como ambição desmedida, obsessão neurótica por resultados,
exploração de fornecedores, pressão sobre funcionários, liderança tóxica, e
outras coisas que se encaixam naquela categoria de vícios que nossas avós nos
ensinaram a evitar.
Pode ser que estejam certos, mas acho
que estão errados. A causa da "debacle" é outra. O mercado
está abandonando a empresa.
A cultura do 3G
sempre fora celebrada pelos experts. Durante décadas, dentro e fora do Brasil,
eram considerados exemplo de liderança e competência. A cultura 3G era
comparada à da GE do tempo de Jack Welch, e com a do Wal Mart sob Sam Walton-
exemplos de sistemas operacionais bem calibrados, eficientes,
modelares. As características eram comuns entre eles: obsessão por resultados,
aperto permanente em fornecedores, propensão para comprar qualquer empresa que
pudesse agregar algo à sua receita ou diminuir seus custos. Sua gestão de
pessoas era do tipo "up or out"-
quer dizer, ou você sobe na empresa, ou é demitido; ficar muito tempo no mesmo
cargo é sinal de acomodação.
Livros,
artigos, cases, e capas de revistas, celebraram durante décadas o
estilo desses guerreiros de negócios.
Mas,
experts e gurus empresariais são como comentaristas de futebol: após o fato,
SEMPRE explicam tudo como se o resultado do jogo tivesse sido consequência das
"causas" que apresentam DEPOIS de conhecido o resultado.
O mundo da gestão está cheio de
comentaristas assim.
Quando aquelas mesmas empresas
começaram a viver tempos difíceis, experts e gurus passaram a discursar,
dizendo que era inevitável que fracassassem.
[Nas referências, no final deste
artigo, recomendo um livro que trata só desse fenômeno (experts/gurus) a partir
de casos bem conhecidos].
Mostre-me uma empresa entregando alto
desempenho, e encontrarei algo grandioso para dizer sobre seus líderes; falarei
da clareza de suas visões, de suas habilidades de comunicação, seu bom senso,
integridade, responsabilidade social, transparência...
Diziam que as pessoas da AMIL do meu
tempo tinham "brilho nos olhos". No grupo que controla a AMERICANAS,
diziam que têm "sangue nos olhos, visão clara do futuro e líderes que
enxergam à frente de seu tempo..".
É curioso como os
"vitoriosos" parecem ter sempre "alguma coisa nos
olhos". Para mim, a julgar pelo que dizem contemporâneos meus na AMIL
que ficaram por lá até a empresa ser vendida, o que tinham nos olhos era uma
tremenda miopia.
Agora, mostre-me uma empresa entrando
em decadência, e encontrarei logo algum "pecado religioso" para
explicar por que o líder falhou. Ser guru não tem risco,
pessoal. Gurus estão sempre certos.
Minha interpretação do buraco na
AMERICANAS é a seguinte:
O mercado consumidor sinaliza que
poderá abandonar empresas do 3G ==>sua receita diminui
==> seu lucro cai porque não dá para cortar custos indefinidamente==> seu
valor de mercado acompanha a queda ==> os bônus dos executivos (atrelados ao
lucro), marca registrada das empresas do 3G, decrescem==> dá-se um jeito para
manter as aparências por meio de algum truque, enquanto se tenta "voltar
ao rumo" (sem perder o bônus, claro!).
O jeito óbvio de manter as
aparências é fraudar de alguma forma os resultados que são reportados.
Já aconteceu antes, e acontecerá sempre que os sistemas de governança
permitirem que aconteça.
Não é Freud que explica, é
Shakespeare.
O que está levando o 3G/AMERICANAS a
essa situação?
É o que eu chamo de "mentalidade
industrial".
-É muito simples: foco total em eficiência
operacional, redução de custos, escala (volume ,volume, volume), busca
de sinergias, padronização. Os produtos são os de sempre, e as
formas de comercialização idem, associadas a preferências e estilos de vida
tradicionais (analógicos). Pressão draconiana sobre fornecedores, exercício do
"poder do mais forte" sem pudor... Uma mentalidade meio "força
bruta". O santo padroeiro dessa seita é Henry Ford-
"padronize tudo, a começar pelo consumidor".
Compre velhas marcas estabelecidas em
setores maduros como bebida e alimentos - coisas mundanas, nada sofisticadas,
que nunca vão sair do radar do consumo. Opere-as com eficiência. Corte custos
agressivamente, enxugue (demita gente), automatize, busque ganhos de toda ordem
onde der. Não tente fazer uma cerveja “melhor" ou diferente, compre as
brasileiras BRAHMA e ANTÁRTICA, a americana BUDWEISER, a argentina
QUILMES, e faça essas “velharias” operarem direito. Compre empresas que
todos conhecem (como o KETCHUP HEINZ e o BURGUER KING) e injete eficiência
nelas!
Empresas do grupo 3G não têm estratégia no
sentido técnico do termo (como definido por Michael Porter num paper clássico aqui .Sim, ele mesmo. Sorry)..
Empresas industriais tendem a focar só em "excelência
operacional" (mais sobre isso
adiante). Exatamente o que ocorre, quase sem exceção, no mercado da saúde
privada, como veremos.
Troque
"cerveja, ketchup e hamburguer", por "consultas, exames e
internações", e você verá a mentalidade 3G/AMERICANAS transplantada para a
saúde.
Outra pequena digressão para
reforçar.
-Não existem mais empresas
sustentáveis (em setor nenhum!) que não sejam empresas de informação.
Seja no varejo de alimentos, bebida, vestuário, onde for.
Há 5 anos escrevi: "a essência da
medicina não é o médico, mas as melhores formas de gerir a informação sobre
pacientes. Saúde não é sobre infraestrutura (hospitais, aparelhos), é sobre
informação paciente a paciente. Agricultura não é sobre tratores, terras,
fertilizantes ou gado. É sobre gestão dessas coisas com base em informação.
Mineração é sobre GPS/Google Maps, não sobre minas e jazidas de minério.
Educação não é sobre mais escolas. Segurança não é sobre mais polícia na rua. O
aumento da prosperidade virá cada vez mais de informação tornando mais
produtivas as atividades de todos os setores ".
No vídeo, Lemann diz que admira
a Zara, Nike e StarBucks- empresas que
comercializam commodities tradicionais como as suas, mas têm
competências que seu grupo não tem.
Eis então que o 3G se depara com a
realidade: o consumidor está buscando opções de produtos mais saudáveis no
mundo inteiro ("ketchup não, por favor!"), milhares de
cervejas artesanais ocupam nichos que ninguém tinha ideia que existiriam,
machucando as vendas das marcas do grupo; canais digitais de compra, venda e
suporte, são cada vez mais relevantes.
O grupo de Lemann não sabe nada
dessas coisas porque nunca precisou saber.
Para a mentalidade industrial,
lembre-se, o consumidor é padronizado.
O "sistema operacional"
delas quase não presta atenção a "segmentação de mercado",
"software”, "nichos", "estilo de vida"
,"comportamento do consumidor". Nunca precisaram de novos produtos,
novos modelos de negócio, ou mesmo de tecnologias mais
"inteligentes".
Lucros são obtidos liberando
"dinheiro preso" nas ineficiências da operação,
pressionando fornecedores e aumentando preços até onde der.
A operação das AMERICANAS nas lojas
físicas tem sido lucrativa, mas a operação on line, não. O digital
não faz parte do sistema operacional deles.
Diante dos primeiros sinais ruins, o
3G saiu comprado marcas de cervejas artesanais adoidado (todas as que
apareceram pela frente), e criou uma área de inovação da qual
não se sabe detalhes. Lemann menciona essa área no vídeo. A ideia, segundo ele,
era utilizar inciativas originadas ali para mudar a cultura do grupo.
O novo setor ficaria fora das estruturas estabelecidas na
organização, e teria liberdade para ousar.
Não
me perguntaram, mas se tivessem perguntado, eu diria que era a coisa certa a
fazer. Seria o que eu teria recomendado como consultor (guru não! Guru é a
vovozinha!!!).
Inovações disruptivas - as que não
encaixam com as formas estabelecidas de uma empresa ganhar dinheiro – só têm
chances de dar certo se ficarem incubadas (protegidas) longe da operação.
Atribuir responsabilidade de inovação desse tipo aos que cuidam do dia-a-dia, é
pedir que os gestores façam coisas que ameaçarão seus salários.
Mas,
se essa separação é necessária, ela não é suficiente. Escreva mil vezes aí:
"pode dar errado! Pode dar errado! Pode dar errado!".
Fazer
o certo, em negócios, não é garantia de que vai dar certo (algo que você jamais ouvirá um guru dizer)
Em 2018 lancei um livro chamado
"A TECNOLOGIA QUE MUDA O MUNDO". Falava (en passant) das
perspectivas futuras do 3G. Citei a fala de Lemann a que me referi, e convidei
os leitores a acompanharem os desdobramentos do caso porque achava que o que
estava em curso era uma aula em tempo real sobre a realidade mais inescapável
e cortante da gestão:
Como
lidar com o RISCO de se tornar irrelevante?
Eu queria saber se o 3G conseguiria,
e dizia:
"Poucas
empresas conseguem se transmutar. A IBM conseguiu. Kodak, Nokia, não. O 3G
conseguirá?".
Na saúde está rolando uma aula
prática muito parecida. Adiante vou analisar desdobramentos possíveis
dela, na perspectiva do que estamos vendo no caso 3G. A "mentalidade
industrial" está em cheque na saúde também. É interessante. Vai lendo.Num livro anterior (ver referências)
eu mostrara que empresas "feitas para durar" não existem-(isso é uma
tolice propagada pela gurulândia, que é como me refiro à terra
da fantasia onde os gurus habitam). Empresa boa é a
empresa que consegue aumentar seu prazo de validade transmutando-se.
Lá atrás, eu perguntava: "Esgotado
o modelo atual do 3G, conseguirão transmutar-se no timing certo? Tecnologias
físicas não são problema (hardware, sistemas de TI )- essas coisas se compram.
Mas, definidos novos caminhos, as pessoas que estão lá saberão tocar novos
modelos? Os processos que têm feito a fortuna dos sócios serão os adequados?
Conseguirão continuar comprando conhecimento que não desenvolveram? E quando
não houver mais ninguém para ser comprado? Serão capazes de construir
internamente as novas “conexões neurais” [em seu sistema operacional]
necessárias para tornar esse conhecimento “orgânico”?
PS:
Os dois maiores grupos empresariais da saúde-D"OR e DASA- têm precisamente
o mesmo problema do 3G. Ambos têm DNA "industrial". Um de
"hospital", e outro de "rede de laboratórios". O DASA tem
sido mais explícito em suas iniciativas para criar uma identidade
"informacional". Volto a isso já já.
Eficiência ou Resiliência?
-Nos ensinam que empresas
sustentáveis devem ser eficientes e resilientes. Estaria
faltando resiliência ao 3G para se adaptar aos novos tempos.
Vejamos isso.
- Eficiência é estar maximamente ADAPTADO
ao ambiente competitivo em que se atua.
- Resiliência é ser ADAPTÁVEL à
mudanças no ambiente, porque ambientes empresariais estão cada vez mais
voláteis.
Mas -espera aí!- se é assim...
...empresas resilientes não
podem ter foco absoluto em eficiência, porque têm que ter
folgas/excessos/redundâncias, para manobrar, se quiserem se adaptar. Elas
precisam de características que se consideram desperdício em
empresas eficientes.
Claro, claro..eu sei... Você vai
dizer que têm de ter as duas características ao mesmo tempo (tem que se "ambidestro"
etc. e tal). Bacana, mas como um dinossauro se torna
"ambidestro"?? Os caras do 3G-que entendem alguma coisinha de
negócios- não estão conseguindo. Como é que faz?
Em gestão, você pode fazer tudo certo
e dar tudo errado!
Isso que estamos vendo sobre o 3G, às
vezes é apresentado na literatura empresarial como o "dilema exploit
X explore" . Soa mais bonito em inglês.
3G, D"OR, DASA, e todas as
grandes empresas estabelecidas da saúde estão vivendo isso. Uns de forma mais
aguda que outros, mas todos estão.
O que pode ajudar a equacionar isso
está nos fundamentos da gestão.
O desempenho de qualquer empresa
depende de duas coisas: estratégia e execução.
Estratégia é desempenhar atividades diferentes das de empresas
rivais, ou realizar atividades semelhantes, mas de maneiras diferentes das
deles.
Uma
estratégia não é uma meta, visão, missão ou declaração de propósito. Estratégia
é sobre ser DIFERENTE dos rivais, de alguma forma que seus clientes considerem
importante.
Execução é implementar atividades para operar a estratégia. Mobilizar recursos. Produzir com qualidade,
dar suporte ao cliente, administrar capital de giro, desenvolver e atrair
talentos etc.
Excelência na operação não é
estratégia. Ninguém se sustenta copiando
"melhores práticas", operando "melhor", ou fazendo benchmarking.
Se seus concorrentes não forem muito estúpidos, você logo vai ser imitado. Foi
o que aconteceu com as empresas Japonesas, que um dia assombraram os mercados
ocidentais. Poucas delas tinham estratégias (Sony e Canon
tinham, como aprendi naquele artigo de Porter que citei acima). Com o tempo, as
espetaculares melhores práticas das empresas japonesas
acabaram sendo copiadas por todos.
É bobagem atribuir sucesso de
empresas a atributos isolados. Sucesso não vem de pessoas
especiais (com ou sem "brilho nos olhos"), ou de
"clima", "foco no cliente", "responsividade"
etc.... Sucesso vem de um emaranhado de causas e efeitos que envolvem essas
coisas e muitas outras.
O sucesso é "não linear", e
o fracasso também.
-PARTE II-
O problema na saúde é o
mesmo: "mentalidade industrial X mentalidade Informacional".
Estruturas de cuidado à saúde sempre
operaram sob a lógica de padronizar o consumidor. O mandamento
número1 dos industriais é esse. Elas estabelecem seus
preços assim:
"Preço=
custo + margem de lucro"
Vimos que isso funciona até que deixa
de funcionar, e deixa de funcionar quando o mercado abandona a empresa
diante de novas opções.
Há uma geração nova de consumidores
começando a adotar critérios de escolha diferentes dos tradicionais. Millenials- nascidos
já na era digital- parecem já estar forçando o início de um processo de mudança
em saúde análogo ao que ocorre em outros setores de consumo. O mandamento
central passa a ser formulado assim:
"Preço=
aquilo que o comprador decide que vale a pena pagar quando têm
alternativas".
É uma baita mudança. A mesma mudança
que está vitimando o 3G.
É
impossível que as novas gerações de consumidores estejam usando, daqui a 10
anos, os mesmo critérios para
escolher cuidado à saúde que predominam hoje. Não vai acontecer.
Eles vão escolher outra coisa. O quê?
-Na figura abaixo, represento algumas
empresas que demarcam o espectro de modelos de prestação de serviços em saúde.
Definem arquétipos de modelos que estão no radar hoje.
[Tratei disso num artigo aqui em 3 de janeiro de 2022. A seguir reproduzo
trechos desse artigo com adaptações, mas recomendo que leia o original].
Modelos
focados em "diagnosticar & tratar", num
extremo do espectro, representam a mentalidade industrial na saúde.
Modelos
focados em "antecipar & prevenir", no
outro extremo, representam a mentalidade informacional, que começa
a despontar como alternativa.
-Num extremo, foco em oferta de
infraestrutura (instalações, equipamentos, especialistas); no outro, foco em
informação sobre usuários. Dados sobre usuários permitirão a customização do
cuidado indivíduo a indivíduo. Inteligência de dados ou analytics, como
chamam. Aquelas mesmas coisinhas que apavoravam Jorge Paulo Lemann naquele
seminário.
-Mais perto do topo- perto de D'Or e
Sul America- estão empresas como HapVida, Bradesco Saúde, Amil, Unimed. Todas,
em maior ou menor grau, são "industriais". ÍMPAR é uma
rede de hospitais pertencente ao Ecossistema Dasa. Se a proposta do
DASA é ser informacional, o que seus hospitais estão fazendo
no bolo dos "industriais"? Trato disso já já.
Entre os extremos, há uma variedade
de modelos híbridos, ainda experimentais, que combinam proporções diferentes de
"industrial" e "informacional", mas sua ênfase e ambição
é informacional. Usam abordagens mais "um para um" para
"Antecipar &Prevenir" necessidades de usuários-
tecnologia, inteligência de dados, coordenação do cuidado ao paciente.
-As 5 empresas que representei entre
os extremos, surgiram depois da pandemia. Pode pensar nelas como análogas às
"cervejas artesanais" do mercado de bebidas. Não terão apelo para
todo mundo de início, não estão tendo moleza para crescer, e nem todas vão
sobreviver.
Claro, alguns já levantam dúvidas
sobre seu futuro (confira aqui por exemplo). Normal. É o que
comentaristas fazem, né? Se alguma dessas entrantes vier a se destacar mais,
eles dirão que isso era inevitável (por conta do "brilho nos olhos"
das pessoas, e de outras lorotas). Se nenhuma se destacar, dirão que era
inevitável porque os líderes não tinham a visão adequada.
Segundo a ANS (aqui), nas praças em que essas entrantes atuam
(Rio e São Paulo ), elas já captam frações significativas das vidas novas que
as operadoras tradicionais estão captando. Pode ser o início de algum tipo
de disrupção. Eu disse "pode ser". Gestão
tem risco. Para startups ele é sempre mais alto. Para startups de saúde, alguns
acham que é um risco suicida.
[Veja meu artigo aqui para entender como
podemos antecipar a ocupação de mercado de entrantes que, no início, parecem
não estar nem "mexendo a agulha"].
Para mim, a única maneira crível de
tratar RISCO, é mostrar o que você FAZ na situação de risco, não é falar bonito
sobre risco. Nunca peça opinião de experts, descubra onde eles
investem seu dinheiro.
Vou dizer onde investiria o meu, e
não falo isso para fazer charme.
Se eu tivesse 100 unidades de
dinheiro para investir durante um período de 10 anos a partir de hoje,
colocaria 70 na concepção de negócio tipo DASA, 25 numa
carteira de empresas entrantes como as do meio na figura, e 5 numa carteira de
"industriais" tipo as do topo da figura (vai que tem dinossauro resiliente ali...Nunca se
sabe, né?).
Era isso que eu faria com meu
dinheiro. Você decide o que faz com o seu.
[Só falo do que fiz, faço, ou tento
fazer. Fico encabulado quando acham que posso "orientar" alguém, pois
não sou muito bom em coisas "motivacionais"].
As empresas informacionais- tanto as
entrantes, como o DASA- vislumbram um cenário que posso descrever um tanto
retoricamente assim:
.."tudo começará com a captura
de dados médicos/demográficos/assistenciais, e, a partir deles, se
fará o traçado de caminhos de cuidado para cada pessoa. A jornada do
cliente será guiada pela informação. A competição por seus dados, dará
poder ao usuário, pois os dados são dele, e empresas informacionais terão
de oferecer-lhe um excelente valor para cuidar de sua saúde.
O marketing será mais ou menos assim:
a partir do que saberei de você, vou direcioná-lo para o tipo de cuidado que
sua condição de saúde pede. Você pagará uma fração do que paga hoje por um
plano de saúde "industrial". Os prestadores trabalharão para mantê-lo
saudável porque ganharão mais assim.
Terei muito mais que os milhões de
clientes (infiéis) que as grandes operadoras/planos/seguradoras têm hoje. Meu
ativo será o relacionamento "fino" cliente a cliente. Farei crescer
minha base de usuários, pois quero ser a Amazon da saúde. No
futuro, venderei tudo o que for relacionado à qualidade de vida e bem
estar para essa base, não só assistência médica. Vou nadar em
dinheiro".
Bom demais para ser verdade? Talvez,
mas essa é a estratégia, falta ver a execução.
Lá atrás, escrevi sobre a D"OR:
"D'OR- a empresa de saúde mais
poderosa do Brasil-tenderá a perder espaço. Menos pagadores estarão dispostos a
contratar seus serviços porque atenção primária à saúde (APS) vai
desempenhar o papel central em qualquer modelo (como venho repetindo há anos). Quanto mais APS,
menos necessidade de "hospital". APS existe justamente para evitar
que o usuário precise de hospital".
D'OR é a melhor caracterização de
"visão industrial" na saúde. Seu "manual de operações"
lembra 3G, GE e WAL Mart : compre todas as empresas de saúde existentes
na terra dos dinossauros que faça algum sentido comprar-
hospitais, empresas de exames, e outras estruturas; ganhe escala, dilua custos
a partir de uma base de infraestrutura física cada vez maior, e domine o
mercado de "diagnosticar & tratar". Esse mercado cresce
vegetativamente com o aumento de idosos na população. Vem dando certíssimo,
mas...
A
aposta implícita no modelo "industrial", é que "cuidado à
saúde" continuará a ter o mesmo significado que sempre teve: as pessoas
continuarão buscando segurança de que terão o melhor diagnóstico/tratamento se
precisarem de cuidado médico.
É o mesmo pressuposto das
operadoras/seguradoras/cooperativas, que represento no mesmo bolo onde está o
D'OR. Todas têm a mesma mentalidade industrial. Mas...
Esse
pressuposto é precisamente o que os modelos alternativos e a proposta do
Ecossistema DASA contestam. E não apenas contestam, mas buscam inverter.
DASA e D'OR são irmãos
siameses separados após o nascimento (não exatamente no nascimento,
depois.)
O DASA tem a mesma origem
"industrial" da D'OR -laboratórios, infraestrutura, hospitais- mas
quer tornar-se referência via informação/inteligência de dados. É
a primeira proposta desse tipo vinda de um player estabelecido, grande e rico.
Ela quer se basear no oceano de dados de que dispõe a partir dos exames que
realiza para customizar/segmentar/cordenar cuidado médico.
Seu business,
portanto, é "antecipar&prevenir".
O inferno astral que as operadoras e
planos tradicionais vivem, se origina em sua falta de vocação para "Antecipar&prevenir"
. Inteligência de dados (alô Lemann!), nunca foi o negócio delas. Leia o que já escrevi sobre isso.
O negócio de planos de saúde
tradicionais é "gerir risco" de carteiras, o que tem sido sinônimo de
"aumentar preços" e/ou "negar cuidado".
Alguém falou em mentalidade
industrial aí?
Operadoras (principalmente as
"abertas", mas também as verticalizadas) não sabem gerenciar o uso
por meio de inteligência de dados. A noção de valor
para o usuário é inexistente para elas. Seu futuro é incerto, pois as
competências que importam para o futuro não fazem parte de seu sistema
operacional.
-DASA tem poderio financeiro e visão
estratégica para construir uma história alternativa em saúde via inteligência
de dados, mas a execução da estratégia será penosa,
e é seu maior risco. Eis porquê.
-DASA tem de tentar manter um
"pé no presente", que é "industrial", mas é de onde vem
suas receitas HOJE (laboratórios, hospitais) - e, ao
mesmo tempo, tem que construir uma história nova, colocando o outro pé no
futuro.
DASA
vive o dilema "exploit X explore", certo?
Nota: os hospitais IMPAR- de DNA
industrial como qualquer hospital- fazem parte do ecossistema DASA que quer
ser informacional. Confuso, né? A estratégia é diferenciar-se
dos dinossauros "industriais" via informação, mas
hospital tem muito pouco a ver com informação.
Aplaudi e aplaudo a proposta do DASA.
A ideia de ecossistema faz muito sentido, mas eu o teria criado fora
das estruturas vigentes na organização. Teria separado antes de juntar. Se você
leu até aqui já sabe o porquê disso.
-"Se eu fosse executivo D'OR,
mudaria progressivamente suas ênfase principal. A demanda por serviços
hospitalares deve diminuir por ação da multidão de empresas
alternativas/disruptivas que vão atuar para que isso aconteça. D'OR tem poderio
financeiro para diversificar suas atividades para onde bem entender; se tiver
visão estratégica fará isso.
Mesmo se as propostas alternativas
fracassarem, é impossível que o modelo atual de financiamento da rede D'OR (via
operadoras) se sustente. Há limites para aumentos de 15% a 20% todos os anos.
As operadoras não vão aguentar porque as empresas que as contratam não vão
aguentar. Parece que a Amil quer pular fora. Sul America já pulou. Quem vai
pagar pelos clientes que vão internar nos hospitais D'OR?"
PS: depois que escrevi o trecho
acima, D"OR comprou a Sul América, o que é uma grande mudança em seu
discurso de não assumir risco de carteiras de usuários, e pode significar que
busca espaço para manobrar se precisar mudar de rumo diante de ameaças mais informacionais.
Escrevi sobre isso aqui. Checa lá.
(A D'OR atual só terá seu prazo de
validade aumentado, se o consumidor demorar a se convencer de que, com ofertas
baseadas em informação, não precisará tanto de hospitais. Esse convencimento do
mercado pode ser demorado, e pode travar modelos alternativos. Risco é risco,
moçada. Querem moleza?).
Os
"indicadores de futuro" da saúde, apontam para um cenário em que as
empresas do setor terão de ter competências muito distintas das atuais.
É o mesmo impasse que está machucando
o 3G. Todas as empresas de saúde estão vivendo ou viverão isso.
Desejo boa sorte às grandes
empresas industriais que assumirem o risco de se transmutarem
em informacionais.
-Torço pelas entrantes disruptivas.
Aguentem firme! Não morram!!
-Sobre as demais, espero, torço e
desejo que os consumidores as tornem obsoletas o mais rapidamente possível.
- O vídeo de Lemann está aqui. Sua fala começa aos 10minutos, mas eu recomendo
que assista tudo. Se tiver dificuldades com o inglês peça ajuda. Vale a
pena.
abç
Clemente Nobrega, 11 / fev./ 2023