A anatomia da mente


A anatomia da mente

Wilder Penfield foi pioneiro em demonstrar que o cérebro tem centros integrativos, conectores das recordações aos julgamentos e emoções.

Começo a coluna com uma história antiga, cuja introdução poderia estar esquecida em páginas policiais de um periódico já extinto. 

Porém se desenrolou imprevisível e alterou os rumos da ciência.

O início: um homem furioso se aproximou de uma menina e disse que iria a jogar em um saco cheio de cobras venenosas.

A partir de então, a criança passou a ter pesadelos recorrentes em que se via presa junto às víboras. 

Quando próxima da adolescência, por outras razões, tornou-se epiléptica. Suas convulsões eram precedidas por assustadoras reminiscências da ameaça vivida, mais visões de serpentes.

A garota recebeu tratamento médico, entretanto os medicamentos não impediram novos ataques epilépticos. A terapia que restava era retirar cirurgicamente a raiz de seu problema. 

Por isso, a jovem foi submetida a uma neurocirurgia.

 Esses eventos ocorreram na primeira metade do século passado e marcaram os primórdios do estudo do cérebro humano. 

Foram ainda mais especiais pois trouxeram a pretensão de que, literalmente, estávamos prestes a tocar a mente humana.

Quem operou a adolescente foi o ilustre Wilder Penfield (1891–1976). Ele abria os crânios de seus pacientes enquanto acordados e, dessa forma, tinha a oportunidade de ver o que acontecia, quando estimulava regiões cerebrais. 

Seguindo esse expediente, havia mapeado áreas cerebrais responsáveis pela execução dos movimentos e as outras ocupadas em nos trazer o tato e a dor.

Penfield notou uma cicatriz no lobo temporal direito da garota, provavelmente a causa da epilepsia. 

Investigativo, o neurocirurgião fez estímulos ao redor daquela ferida. Imediatamente sua paciente começou a dizer: "eu vejo algo vindo até mim, não deixem eles chegarem perto". Apavorada, a menina escutava sons hostis.

A desagradável experiência da jovem não ocorria se os eletrodos estimulassem outras partes cerebrais. Dessa forma, o médico referiu àquela porção encefálica como o depósito de memórias. 

Mas seus estímulos reacenderam mais do que recordações. Trouxeram à tona emoções que acompanhavam a experiência original, o raciocínio sobre o significado do evento, mais a própria interpretação do indivíduo sobre o acontecimento.

O todo integrado era mais do que recordações factuais, mas, sim, memórias evocadas, a retomada de pensamentos originados naquela situação, junto às emoções que as coloriram. 

Penfield então considerou que o estudo desses fenômenos era "o início de uma fisiologia da mente".

A partir desse ponto, ele depositou suas esperanças em encontrar um caminho para encontrar as regiões cerebrais que abrigavam a mente. 

Tal qual havia mapeado as bases cerebrais para os movimentos dos membros, encontraria os sítios anatômicos que unificariam a consciência, memória e a habilidade de experienciar.

Quando testemunhamos um acontecimento, uma cadeia de conexões de neurônios se forma. Recordaremos o acontecimento, reviveremos emoções e razoaremos novamente, sempre ao se fazer ativas estas conexões.

 Esse é o conceito de engrama: uma via permanente constituída de muitas sinapses formada em resposta a uma experiência individual. Penfield passou a estudar as propriedades elétricas dos engramas.

Porém até hoje não temos o entendimento pleno do engrama. Nem ainda encontramos um deles, em sua totalidade. 

Muito menos dominamos os fenômenos químicos que o fazem funcionar e se atualizar. 

Portanto, não sabemos quais modificações ocorrem nos neurônios para que memórias se consolidem e desapareçam. 

Tampouco, como elas mudam, conforme revivemos nosso passado e reinterpretamos os acontecimentos antigos.

Penfield foi um pioneiro em demonstrar que o cérebro tem centros integrativos, conectores das recordações aos julgamentos e emoções. 

É bem provável ser o engrama a estrutura fundamental para essas junções.

Provavelmente, o neurocirurgião pensou que se mapeasse os engramas, leria a mente, fazendo-a acessível à sua compreensão e ao seu toque. 

Confirmaria que a nossa experiência de ser depende de como nossa atenção recupera nossas memórias. 

Contudo, Penfield não obteve este êxito em localizar a mente no cérebro, a despeito de grandes sucessos conquistados, marcados por novas técnicas de neurocirurgia e a compreensão de alguns mecanismos do funcionamento cerebral.

Afinal somos mais complexos, temos características que influenciam nossa mente, como criatividade, otimismo, humor. 

Às vezes somos nostálgicos, outras tentamos nos distanciar do passado. Nossa mente não está em uma parte de nosso cérebro, ocupa todas as suas partes, e se expande, situando-se em todo o nosso corpo. 

O conjunto de nosso organismo é mais complexo do que nosso cérebro.

Referências:
1. Leblanc R. Pavlov, Penfield, and the physiology of the mind. Neurology. 2019 Mar 19;92(12):575–8.

2. Leblanc R. The White Paper: Wilder Penfield, the Stream of Consciousness, and the Physiology of Mind. J Hist Neurosci. 2019 Oct 2;28(4):416–36.

3. Tonegawa S, Liu X, Ramirez S, Redondo R. Memory Engram Cells Have Come of Age. Neuron. 2015 Sep 2;87(5):918–31.


4. Denny CA, Lebois E, Ramirez S. From Engrams to Pathologies of the Brain. Front Neural Circuits. 2017;11:23.

LUCIANO MAGALHÃES MELO - Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.


Tel: 11 5044-4774/11 5531-2118 | suporte@suporteconsult.com.br