Nos primórdios dessa
história, as meninas pediam bonecas que abriam e fechavam os olhinhos e os
meninos pediam um revólver com cinturão e coldre de couro marrom para brincar
de mocinho. Nos primórdios dessa história, o emprego de Papai Noel era mais
previsível. Uma cozinha em miniatura. Uma espada de plástico. Brincando, as
meninas eram adestradas a ser donas de casa. Os meninos aprendiam que a
hombridade pressupõe a habilidade de assassinar.
Nos primórdios, era mais fácil. Era mais fácil ser Papai Noel e,
também, era mais fácil criticar o Papai Noel. Fácil até demais. O bom velhinho
começou a ser contestado por vozes que não queriam que ele estivesse a serviço
da mera reprodução do modo de vida viciado da mulherzinha oprimida e do macho
homicida. Os ideais libertários da década de 1960 impuseram adaptações
pedagógicas (e chatas) ao ofício de dar presentes. O Natal deveria ser, por que
não?, um motor da construção do “mundo melhor”. Surgiriam assim Papais Noéis
meio de esquerda, engajados em causas como a solidariedade, a fraternidade e
até mesmo a paz entre as nações.
Tudo ia bem até que, no bojo da chamada revolução tecnológica,
viria uma mudança súbita para desorientar os pais que se recusavam a dar
bonequinhas submissas às filhas e armas de brinquedo aos filhos. Pretensamente
modernos, esses pais queriam dar presentes educativos. No dia de Natal, davam
joguinhos eletrônicos embrulhados em papéis metálicos, crentes de que estavam
abrindo os caminhos do futuro tecnológico para as novas gerações. Depois, vendo
os filhos brincarem com as novíssimas invenções, ficavam estarrecidos. Viam
que, em lugar de um reles “revolvinho” de espoleta, tinham presenteado seus
herdeiros com gincanas de dizimar “terroristas árabes” com uma pistola 9mm numa
mão e um AK47 na outra.
O teatro da guerra que horrorizava os adultos tinha se tornado o
passatempo mais excitante das crianças. Nesse embalo, a indústria dos games
virou uma febre transnacional, suplantou a indústria do cinema, transformou o
mundo inteiro num cassino (em que os impúberes apostam em dinheiro), estetizou
a violência, violentou a estética e revogou a noção que tínhamos da morte.
Neste novo mundo em que as crianças aprendem inglês decorando o nome de tanques
de guerra, morrer não é mais tão definitivo. Se o jogador leva um tiro na cara,
ele vai lá e “compra” novas vidas. A vida é uma mercadoria. Os inimigos também
contam com o mesmo recurso. Depois de exterminados, ressurgem das trevas, ainda
mais ameaçadores. Saídos das profundezas da feitiçaria imemorial, os
mortos-vivos ingressaram na indústria do entretenimento para dar vida nova, e
múltipla, ao cassino infanto-juvenil em que o planeta se converteu.
Embriaguez
vazia
Os mortos-vivos são o ideal de beleza e de rentabilidade da indústria
do entretenimento. São eles também que ensinam a arte bélica de viver. Graças
aos zumbis, as crianças aprenderam que morrer é uma intercorrência descartável,
como esfolar o joelho. A morte não é mais uma fronteira simbólica. O zumbi se
afirma, agora, como a síntese perfeita de um tempo que se crê inesgotável e
invencível. O morto-vivo materializa a condição humana que nos resta.
Já tivemos outros mitos igualmente macabros para animar as
fantasias modernas. O Frankenstein de Mary Shelley, por exemplo, produziu com
pedaços de cadáveres a criatura viva que o destruiu, na mais célebre metáfora
da ciência como força destrutiva. Nascido como ficção na 1.ª Guerra,
Frankenstein antecipou o pesadelo da 2.ª Guerra, que traria a inauguração da
bomba atômica e as doutrinas que pregavam o genocídio. O monstro de
Frankenstein, é claro, também virou máscara de brinquedo de criança e fantasia
de carnaval.
Outro mito moderno é o Conde Drácula, de Bram Stocker. O mais
famoso vampiro da literatura, Drácula perdura até hoje como a melhor tradução
dos que se fartam da energia alheia sem ter de trabalhar. Drácula é aquele a
quem o dinheiro nunca falta, aquele que dorme durante o dia e ataca suas
vítimas durante noitadas de gozo letal. Também virou brinquedo de criança e adorno
carnavalesco.
O interessante é que os dois mitos, o nobre Drácula e a criatura
de Frankenstein, são, eles também, precursores do morto-vivo. Um e outro estão
além da morte. Não podem morrer, simplesmente. Parecem condenados a não morrer
jamais. Também como os zumbis, não existem para assombrar, mas apenas para
divertir a humanidade carente de divindades que não seja o Papai Noel (que,
aliás, também pode ser visto como uma espécie abobada de morto-vivo).
Os zumbis, contudo, não têm a aura do Drácula ou do monstro de
Frankenstein. Não têm uma personalidade individual. Não têm sequer nome e
sobrenome. São a massa indiscriminada, o populacho, o proletariado. São
mendigos, porteiros, prostitutas, marginais. Em campeões de bilheterias nos
cinemas, os zumbis extasiam os adolescentes. Depois, viram games cultuados em
todos os continentes. Outras vezes, são os games que inspiram longas-metragens,
como no já “clássico” Resident Evil.
Em produções cada vez mais requintadas, os mortos-vivos são o
nosso melhor paradigma. Em forma de um game ou de um DVD, chegaram hoje a
milhões de lares, trazidos no saco do Papai Noel. Agora, em vez de aprender a
ser dona de casa passiva (no caso das meninas) e a ser rápido no gatilho para
matar os adversários (no caso dos meninos), as crianças brincam de estar vivas
e mortas ao mesmo tempo, como se entre viver e morrer não houvesse mais uma
diferença substantiva. Numa era em que o passado é uma obra de ficção e o
futuro é necessariamente pior do que os dias atuais, o presente se expande numa
embriaguez vazia, tendo a diversão como o único denominador comum. Viver para
se divertir é o quanto basta. E só para se divertir vale a pena morrer.
Os mortos-vivos desbancaram a Barbie e o Durango Kid e nos
proporcionam um feliz Natal.
Eugênio Bucci -
jornalista e professor da ECA-USP
Fonte: jornal Folha de São
Paulo