Emergência atual tem potencial para
nos obrigar a reformar nossas sociedades.
Os
últimos meses não têm sido fáceis. Mas a pandemia atual pode muito bem vir a ser o tipo
de crise que o mundo já antecipava e do qual realmente precisa.
O
mundo está quebrado. A ordem global vigente desde a Segunda Guerra Mundial
está em frangalhos, e ninguém sabe o que vai vir a seguir; a cooperação global
está no ponto mais baixo na memória das pessoas vivas hoje.
O
capitalismo não está funcionando para pessoas demais, fato evidenciado pelos índices de desigualdade sempre crescentes. A
democracia representativa, tampouco; cada vez mais os controles do poder vêm
sendo tomados por interesses especiais, os governos se mostram incapazes de
responder às mudanças e demandas sociais, e as redes de segurança social não conseguem resgatar as pessoas por tempo suficiente para lhes dar um senso de segurança
adequado.
O
coronavírus é o tipo de crise singular –aguda, multifacetada, em constante evolução—que
afeta cada elemento de nosso mundo político roto. É claro que houve outras
crises nos últimos anos que deixaram o mundo em situação precária: o 11 de
setembro, a Grande Recessão, a gripe suína H1N1 de 2009, para citar apenas
algumas.
Vistas
em retrospectiva, porém, essas crises acabaram sendo muito menores e/ou mais
específicas do que o mundo precisava que fossem. Apesar de toda a solidariedade
global depois do 11 de setembro, o lançamento de duas guerras fracassadas no
Oriente Médio não mudou o terrorismo... e não chegou à raiz de qualquer dos
problemas reais com o contrato social.
A Grande Recessão afligiu gravemente os bancos e áreasrelacionadas a eles (levando a reformas nesses setores específicos),
mas acabou sendo pequena demais para levar o mundo a repensar a desigualdade; o
movimento “Occupy Wall Street” chamou muita atenção, mas acabou morrendo depois
de apenas alguns meses.
E
o perigo da gripe suína de 2009 foi tão superestimado, em comparação com o
risco real que acabou representando de fato, que em última análise isso
aumentou a dificuldade de o mundo levar o coronavírus tão a sério quanto
deveria. Basta pensar em quanto tempo a Organização Mundial deSaúde (OMS) levou para categorizá-lo oficialmente como pandemia.
Mas
o coronavírus tem o potencial de ser diferente. É o tipo de crise que pode ser
justamente grande o suficiente para nos obrigar a examinar e contemplar
seriamente como reformar nossa sociedade e instituições, mas não é grande o
suficiente para representar uma ameaça existencial à humanidade. No entanto,
afeta todas as questões políticas críticas de hoje –a desigualdade, as redes de
segurança social, a assistência de saúde, a cooperação global... todas as que o
mundo passou as últimas décadas lutando para resolver e com as quais ele não
conseguiu avançar muito.
O
coronavírus representa uma ameaça praticamente uniforme às sociedades de todo o
mundo, levando a atenção de todos a concentrar-se sobre uma questão única, de
uma maneira que raramente vemos exceto durante guerras globais.
Tratada
corretamente, a universalidade da ameaça do coronavírus abre uma janela para cooperação científica em torno daqual o mundo pode se unir: uma abordagem colaborativa e sustentada à
descoberta e distribuição de uma vacina pode vir a ser a maior realização da
humanidade até agora.
Nos
Estados Unidos, a agitação econômica, social e política decorrente do vírus
pode fornecer o ímpeto necessário para finalmente ser levada a cabo uma reforma
financeira radical das campanhas eleitorais, para empurrar mais pessoas a
participar do processo político e obrigar os governos a ser mais responsivos às
necessidades da sociedade.
Poderiam
ser inventadas novas maneiras de medir o PIB e a qualidade de vida para captar
como é de fato viver no século 21, com a “gig economy” (movida por profissionais autônomos e freelancers) e tudo, e até ser criados programas públicos como Renda
Universal Básica, em um esforço sério para finalmente consertar nosso contrato
social desgastado.
É
desnecessário dizer que não é isso o que temos visto até agora, nos primeiros
dias da crise. Nos Estados Unidos, pelo menos, temos tido mais política
partidária polarizada, isso sem falar no aprofundamento de hostilidades que tem
o potencial de nos levar a uma guerra fria entre EUA e China.
Mas
ainda não é tarde demais para mudar de direção.
O
coronavírus está no ponto ideal das crises globais –grande o suficiente para
exigir reformas profundas e duradouras, mas não o suficiente para fazer dessas
reformas uma preocupação secundária distante à simples sobrevivência. Em suma,
pode ser uma crise “goldilocks” (nem grande nem pequena demais) –desde que
nossas respostas políticas não agravem os problemas e que não desperdicemos
este momento.
Ian Bremmer - fundador e presidente do Eurasia Group, consultoria
de risco político dos EUA, e colunista da revista Time.
Tradução de Clara Allain