Os
rolezinhos trouxeram boas análises sobre o desejo de consumo dos jovens da
periferia, mas poderiam ter suscitado debates mais amplos, sobre o direito à
cidade.
Para o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, “o problema do shopping
center é a ideia de confinamento que destrói a cidade. (…) O pior é a praça de
alimentação. Parece um lugar para distribuir ração”
“O problema do shopping
center é a ideia de confinamento que destrói a cidade. Uma cidade não pode ser
feita de quimeras. Ela é feita de botequim, de padaria.”
“O pior é a praça de
alimentação. Parece um lugar para distribuir ração.”
Esses comentários,
ligeiramente condensados, foram feitos por Paulo Mendes da Rocha em junho de
2006, na “sabatina Folha“, pouco depois que o arquiteto recebeu o Prêmio
Pritzker.
O fenômeno dos
rolezinhos ganhou destaque nas várias mídias ao longo das últimas duas semanas
e produziu algumas análises de fôlego relativas ao desejo de consumo,
ostentação e diversão dos jovens da periferia e ao preconceito contra a
presença coletiva deles nesses espaços construídos com a promessa de proteger
os clientes da turbulência das ruas. Mas poderia ter servido também para
recuperar o debate sobre o modelo de cidade que adotamos, e que cria
progressivamente zonas de exclusão, às vezes explícitas, como nos condomínios
fechados, às vezes veladas, como nos shoppings.
Reação à repressão
Desde a repressão a
jovens que procuraram abrigo no Shopping Vitória, no Espírito Santo, depois que
um baile funk foi encerrado à força pela polícia (ver aqui), no fim de novembro do ano passado – um episódio inicialmente
tratado como arrastão, por essa associação automática entre juventude pobre e
crime –, começaram a circular pela internet denúncias de preconceito.
Convocados pelas redes sociais, os rolezinhos – já de si uma atitude política,
como aponta a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado (ver aqui) –, ganharam nova conotação depois da
repetição de cenas de truculência policial em São Paulo: passaram a ser o
desafio de afrontar coletivamente um ambiente asséptico. E, claro, tornaram-se
uma oportunidade para a atuação de militantes de movimentos sociais e partidos de
esquerda, um pouco à maneira da manifestação ocorrida no Rio em 2000, quando um
grupo de sem-teto foi reunido para uma “visita” ao shopping Rio Sul (ver aqui) e demonstrou, pelo contraste evidente, a segregação que aquele
espaço impunha.
Reações despropositadas
A multiplicação desses
rolezinhos às vésperas da retomada dos protestos contra a realização da Copa do
Mundo – que, embora sem reunirem muita gente, na semana passada voltaram a
produzir cenas de destruição – foi mais um fator a provocar tensão. O fato
inédito de alguns shoppings terem preferido fechar as portas para se prevenir
da “invasão” dos indesejáveis demonstrou o grau de temor e despreparo dos
empresários para lidar com a situação.
As autoridades, por seu
lado, se apressaram a reconhecer a falta de espaços de cultura e lazer na
periferia e prometeram suprir essa carência, o que não deixa de ser louvável,
mas ao mesmo tempo reforça a perspectiva de segregação, no estilo “cada macaco
no seu galho”. E é também um pouco inútil para esse fim, porque se esses jovens
desejam frequentar os lugares da moda, é para lá que eles vão.
É importante aproveitar
o momento para mostrar a dificuldade de se lidar com as urgências e a excitação
próprias da juventude, que independem de classe social mas são, por isso mesmo,
tratadas de modo distinto: excessos de jovens ricos e de classe média são
tolerados ou se tornam motivo de preocupação e cuidado, excessos de jovens
pobres são liminarmente criminalizados. A condenação à “zoeira” que os
rolezeiros provocaram, correndo e gritando pelos corredores e assustando
clientes, deixou isso muito claro: logo surgiram notícias sobre algazarras
semelhantes promovidas por jovens universitários, demonstrando mais uma vez quem
pode e quem não pode, ou não deve, frequentar esses lugares.
A questão urbana
Mas é exatamente por
isso que seria importante recolocar a questão do modelo de cidade e dos valores
que devemos cultivar. A Carta Maior aproveitou essa
oportunidade, numa entrevista com a socióloga Valquíria Padilha, que defende a
eliminação dos shoppings e sua substituição por “parques, espaços de cultura,
bibliotecas, cinemas, teatros, circos, escolas, tudo aberto a todos
igualmente”, em nome de “uma sociedade emancipada e verdadeiramente rica”.
As críticas de
urbanistas às remoções e à radical transformação urbana que se está operando no
Rio em nome da Copa e das Olimpíadas mereceriam ser trazidas para esse
contexto.
Enquanto isso não
ocorre, recordemos os comentários de Paulo Mendes da Rocha na sua “sabatina”,
ironizando a ilusão de segurança que a segregação provoca:
“Temos que ser livres de
fato. E sentar na rua. Já amanheci deitado com um amigo na sarjeta na praça da
República e não aconteceu nada. Em qualquer desses bairros privados, teríamos
sido metralhados. Em certos bairros, se eu for pra lá, já vão me perguntar o
que eu estou fazendo. Se disser que não sei, que fui passear, vou em cana. Isso
é um absurdo. A cidade é democrática. A cidade é livre. O que acontece com essa
classe temerosa que se autoalimenta do pavor? Dizem: ‘Não há segurança’. Como
pode haver segurança para quem tem filhos? Como? Botar um guizo em cada filho?
É impossível. É uma ideia tola, a da segurança, e um instrumento da exclusão”.
Sylvia Debossan Moretzsohn - jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense,
autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da
notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos.
Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora
Revan, 2007).
Fonte: site controversia