Introdução de Direto de Paris – Coq au vin com feijoada, de Milton Blay, 224 pp. Editora Contexto, São Paulo, 2014;
Ao
abençoar os sambistas do Brasil – branco, preto, mulato, lindo como a pele
macia de Oxum –, Vinicius de Moraes filosofou: “A vida é a arte do encontro,
embora haja tanto desencontro pela vida”. Empresto a frase do poeta, gravada
para sempre no tampo de cristal da mesa de reuniões da Rádio França
Internacional, para lembrar – e contar – os tantos e quantos encontros e
desencontros vividos nesses 35 anos em Paris.
Foram
inúmeros encontros inusitados: com Orson Welles, em torno de uma salade de
boeuf no centenário bistrô Benoit; com um Chagall falador e nostálgico; com
Jacques Chirac, admirando o sexo de uma musa de Picasso; com o aiatolá
Khomeini, prometendo a jihad, guerra santa islâmica; com FHC esperançoso
ao entregar o cargo a Lula; com Sarney, em Marselha, desafinando na “Saudosa
maloca”; com Le Pen, la bête immonde; com o general francês Aussaresses,
que ensinou os nossos militares a torturar...
E
muitos desencontros também: do general-presidente Figueiredo, deixando o Hotel
Marigny às escondidas para viver a noite de Pigalle, a Jânio Quadros
“sonambulando” em plena Praça da Concorde; da boulangère de cara
amarrada ao policial incongruente; da descoberta do passado fascista do
“socialista” Mitterrand ao desentendimento do casal Amado – Jorge e Zélia – com
o casal London, comunistas que os acolheram na Praga soviética; do médico que
queria a todo custo que eu, em nome da brasilidade, tivesse doença venérea...
Tantos
casos...
Vítimas
de deformação profissional, as palavras, depois linhas, parágrafos e
pontos-finais surgiram no estilo radiofônico, “curto e grosso”. A opção pela
primeira pessoa foi mais complicada. Minha geração aprendeu, na prática, que o
“eu” não existia na escrita jornalística. O repórter devia se limitar a narrar
o fato, a partir daqueles seis paradigmas: o que, quem, quando, como, onde, por
quê. Se essas questões não fossem respondidas na abertura da matéria, o lead,
era melhor rasgar a lauda e começar tudo de novo. Era preciso guardar certa
distância em relação ao acontecimento para ser o mais “objetivo” possível. Se
em seus primórdios o Jornal da Tarde arrebentou as correntes que sufocavam
a criatividade, a Folha de S.Paulo dos anos 1980 tratou de
ressuscitá-las. Fui ator dos dois.
Voz e
rosto
Mas
eis que o new journalism se impôs no cotidiano, com a internet foram
criados os blogs, o Twitter e o Facebook, e o jornalista passou a ocupar a
posição de personagem central, às vezes tão ou até mais importante que o objeto
do artigo. O número de colunistas nas redações ultrapassou o de repórteres. E
assim o texto, antes sem identidade, passou a ter nome e sobrenome.
Pouco
a pouco surgiram histórias, lembranças de momentos vividos em uma terra que foi
me adotando ao longo desses mais de 30 anos, transformando-me em um ser
híbrido: franco-brasileiro-migrante, coq au vin com feijoada. No papel,
surgiram sensações e sentimentos que desobedeceram à “objetividade”
jornalística.
Quis
contar historietas de um cidadão-correspondente brasileiro em Paris, que, como
muitos, chegou à França no final dos anos 1970 para passar dois anos, no
máximo, e que aqui se encontra até hoje, a poucos quilômetros da Torre Eiffel.
Sem arrependimento, porém com o sentimento onipresente de que amanhã será o dia
do retorno. Como quase todo imigrado, que pensou milhões de vezes em voltar e
outros tantos milhões em ficar, preparei o retorno que nunca concretizei.
Talvez seja assim até o fim, talvez este livro seja um início de resposta.
Pouco importa qual seja o futuro, tornei-me parisiense, uma cidadania diferente
de qualquer outra.
Neste
livro, deixei de lado reportagens de guerra, como a da Bósnia-Herzegovina e a
do Oriente Médio, e coberturas de fatos marcantes, como a chegada do aiatolá
Khomeini a Teerã, os atentados de Paris cometidos nos anos 1980 pelo argelino
GIA (Grupo Islâmico Armado), a greve do Sindicato Solidariedade, liderado por
Lech Walesa, em Gdansk, pedra inaugural do desaparecimento da Cortina de Ferro,
o encontro desencontrado do polonês com Lula, ambos ainda sindicalistas, um
querendo sair do comunismo, o outro querendo abraçá-lo, o primeiro voo do
Concorde, o lançamento do satélite Brasilsat 1 pelo foguete Ariane, da base de
Kourou, na Guiana, ou ainda a morte trágica de Lady Diana no túnel da Ponte
Alma, quase em frente à nossa embaixada, entre tantos outros. Optei por
acontecimentos que talvez possam parecer menores, mas que, por razões diversas,
me tocaram, me fizeram rir, chorar, me deixaram feliz ou indignado, me tiraram
o sono. Quis também traçar, em breves pinceladas, este país de contradições – a
França –, sobre o qual muito se fala e pouco se sabe, e que, apesar de
sentimentos ambivalentes, está impregnado na minha pele.
Inspirado
no mestre Hemingway, rascunhei a “minha” Paris, feminina por excelência, que
continua a ser uma festa. Quis dividir com cada um dos leitores as largas
avenidas e os recônditos desta cidade única no mundo, a mais visitada, que
esconde dos turistas alguns de seus maiores tesouros. Procure uma similar, não
vai encontrar.
Não
tive a pretensão de escrever um livro exaustivo sobre a minha carreira de
correspondente internacional, talvez a mais longa do jornalismo radiofônico
brasileiro, nem dar conselhos para jovens que se lançam na profissão com o sonho
de abraçar o mundo. Mesmo se a eles dedico algumas linhas vindas de outro
século, antes da internet, em que nem sonhávamos com o mundo virtual. Para as
chamadas “putas velhas” do jornalismo, vão aqui lembranças de como era
trabalhar no tempo em que a palavra “reportagem” tinha som de máquina de
escrever, gravador de fita, mancha de carbono nos dedos, sabor do cafezinho de
garrafa térmica.
Ao
escrever, quis apenas tirar ao acaso da caixa de memória histórias como aquelas
que animavam as noitadas de jornalistas “das antigas”, quando ao sair da sala
de redação, após o fechamento da edição, nós nos reuníamos no boteco do Alemão
para jogar conversa fora e depois, no jantar da alta madrugada, nos paulistanos
Sujinho, Gigetto, Giovanni Bruno ou Pirandello, para relembrar “causos”. Sem
saudosismo e sem smartphone. Histórias, com h minúsculo, para serem
saboreadas com uma taça de bordeaux, de preferência tinto, camembert e
baguette, em frente ao fogo da lareira crepitando.
Este
livro é, antes de tudo, um bate-papo com os ouvintes, para quem sou uma voz sem
rosto e a quem saúdo com um bonjour, direto de Paris.
Milton Blay - jornalista