Há algumas semanas o governo federal anunciou que fará mudanças nas regras do FGTS. De imediato, todas as contas terão liberação de R$ 500, com o que se pretende dar um fôlego à demanda de curto prazo. Mas há alterações de longo prazo, que darão mais flexibilidade ao trabalhador para mexer em seu saldo, além de aumentar a remuneração.
Essas mudanças são bem-vindas. Hoje, o dinheiro do trabalhador é depositado compulsoriamente em contas que ele tem pouca liberdade para movimentar e cuja remuneração é baixa. Por essa poupança obrigatória, o governo remunera o trabalhador a uma taxa mais baixa do que aquela paga a seus credores.
No fim das contas, o FGTS funciona como um imposto escondido sobre a renda do trabalho.
As mudanças corrigem em parte esses problemas, ao dar ao trabalhador a opção de realizar saques parciais uma vez por ano (o chamado “saque-aniversário”) e aumentar a remuneração. O governo indicou que a taxa de juros paga pelo dinheiro depositado no FGTS será próxima à obtida no Tesouro Direto.
O governo sinalizou ainda que as mudanças ajudariam a aliviar distorções sobre o mercado de trabalho induzidas pelo FGTS, em particular a elevada rotatividade observada no Brasil. O trabalhador tende a passar pouco tempo em cada emprego, dificultando a acumulação de capital humano específico à firma e os ganhos de produtividade correspondentes.
O FGTS ATUAL E A ROTATIVIDADE NO MERCADO DE TRABALHO
O argumento do governo tem fundamento teórico. Atualmente, caso o empregador decida demitir um funcionário sem justa causa, ele precisa pagar uma multa correspondente a 40% do saldo do FGTS.
Isso implica que, quanto mais tempo o trabalhador permanece em seu emprego, maior o saldo acumulado e maior a multa em caso de demissão sem justa causa. Empregadores, antevendo esse cenário, podem de fato preferir antecipar o fim de vínculos, de modo a evitar um pagamento de uma multa muito alta.
Já os empregados, sabendo que o tempo médio de permanência na empresa é baixo, teriam pouco interesse em se esforçar no aprimoramento profissional específico da firma. O resultado seriam vínculos curtos (e, portanto, alta rotatividade) e pouco aprendizado na empresa, com consequentes baixos ganhos de produtividade –em linha com o argumento do governo.
Além disso, quanto maior a multa em caso de demissão, menor o custo do desemprego para o trabalhador. Assim, à medida que o saldo do FGTS se acumula, o patrão teria cada vez menos opções para incentivar esforço, na medida em que a ameaça de demissão passa a ser cada vez menos penosa para o empregado.
COMO AS NOVAS REGRAS PODEM MUDAR ESSE QUADRO?
Considerando o raciocínio acima, as mudanças no FGTS poderiam reverter esse quadro, diminuindo a rotatividade e elevando os ganhos de produtividade? Não necessariamente.
As distorções discutidas somente aparecem porque o custo de demissão aumenta com o tempo no serviço –já que quanto mais longo o vínculo de trabalho, maior o saldo acumulado do FGTS. Com as novas regras, o trabalhador poderia sacar parte do seu dinheiro, o que contribuiria para que o saldo não se acumulasse tão rapidamente. Isso reduziria o crescimento do custo de demissão à medida que o tempo de serviço na empresa aumenta.
Como consequência, os incentivos para interromper antecipadamente os vínculos seriam atenuados, o que contribuiria para reduzir a rotatividade e facilitar os ganhos de produtividade específicos à empresa.
Mas isso só será possível se o trabalhador optar pelo saque-aniversário, que permitirá retirar parte do saldo uma vez por ano. Se o trabalhador não fizer essa opção, as distorções podem na verdade se acentuar: com a remuneração mais alta do FGTS, o saldo crescerá mais rapidamente – ssim como o custo de demissão sem justa causa.
Assim, o efeito final no mercado de trabalho dependerá da taxa de adesão ao saque-aniversário. Se pouca gente optar pelo novo formato, as distorções aumentam, já que saldos médios passam a aumentar mais rapidamente.
Há alguns aspectos no desenho do novo FGTS que levantam preocupações. Aderir ao saque-aniversário tem um custo: a pessoa deixaria de ter acesso ao saldo integral caso perca o emprego, o que hoje funciona como um seguro contra o desemprego. Isso pode desestimular algumas pessoas a migrar para essa modalidade.
Mais importante, como sabemos de evidências da área de economia comportamental, as pessoas tendem ficar com a opção default –isto é, a selecionada caso elas não façam nada. E, no caso, o default é permanecer no esquema atual (para migrar para o saque-aniversário, a pessoa tem de ser proativa).Já
vimos isso recentemente no caso do cadastro positivo, que permite ao indivíduo liberar informações de seu histórico de crédito para instituições financeiras. Isso é de interesse de muita gente, pois possibilita que as pessoas recebam ofertas de outros bancos, aumentando a competição no sistema financeiro.
Mas como inicialmente o default era não divulgar suas informações, pouca gente aderia. A nova lei do cadastro positivo alterou o default –caso o indivíduo não faça nada, suas informações serão disponibilizadas. Espera-se que isso amplie consideravelmente a adesão à inovação.
Se esse viés em favor do default ocorrer no caso do FGTS, poucos indivíduos optarão pelo saque-aniversário. E como a remuneração vai aumentar, o custo da inação para o trabalhador ficará bem mais baixo – o que deve reforçar a escolha pelo status quo. Nesse caso, os saldos das contas tenderão a crescer mais rápido, assim como os custos de demissão, reforçando as distorções induzidas pelo FGTS no mercado de trabalho.
Sem dúvida o aumento da remuneração é bem-vindo, pois diminui o imposto escondido sobre o trabalhador originado pelo FGTS. Mas pode trazer uma consequência indesejada, ao elevar a taxa de crescimento dos saldos, especialmente se pouca gente optar pelo saque-aniversário. Nesse caso, o custo de demissão tenderá a crescer ainda mais rapidamente com o tempo de serviço, incentivando o encurtamento dos vínculos de trabalho e a rotatividade, além de reduzir os ganhos de produtividade dentro da empresa.
Fonte: coluna Por quê? , jornal FSP