Pratique o 'let it be'
Pessoas com diferenças marcantes só conseguem seguir adiante se
entenderem que nem sempre alguém irá acender uma luz diante de suas escuridões.
Ouvi um
psicanalista falar certa vez que quando umas das encrencas da vida nos cerca
temos duas opções muito claras: amarrar o bode e ficar atado com aquele
amargor, aquela experiência ruim, até perder de vista e perturbar a mente ou
praticar o ‘let it be’, o deixar rolar, e não incentivar que se consolide na
memória o calundu, o desgosto de um lampejo que maltrata.
Assim, quando alguém nos fecha no trânsito, bate na traseira do
carro novinho, nos decepciona com atitudes que ferroam a alma, tentar não se
entregar ao ímpeto do revide e confiar que a sabedoria do tempo é mais profunda
e sagaz que a explosão e o desespero do agir de sobressalto nos habilita a
avançar como humanos.
O ‘let it be’ não tem nada de ser bundão ou ser conformado
diante as injustiças, os preconceitos, os malfeitos com o mundo, com a natureza
e com as pessoas.
Também não é ser inativo com aquilo que violenta, que
massacra, fazer vista grossa diante de flagrantes irresponsabilidades
emocionais.
Praticar o ‘let it be’ é
acreditar que agarrar dentro de si uma sensação que consome o pensamento, que
nutre ódio, que turva os olhos não é a única possibilidade para o escoar de
nossas emoções, angústias e tristezas.
Sentir é terapêutico, mas chafurdar naquilo
que não nos fez bem é vício que nos aprisiona.
E como explica com muito mais
propriedade a genial Maria Homem –e que amplio
livremente aqui o conceito para além do perdão sentimental—, o descortinar um
momento turvo de magoas ou rancores não tem nada de sensação de superioridade
moral, de bondade ou divindade, mas, sim, a compreensão de que todos estamos "num
mesmo patamar de gente", de aprendizagem e sujeitos a descuidos.
Pessoas com diferenças marcantes, como a minha, só
conseguem seguir adiante na vida com relativa desenvoltura se entender que nem
todo o mundo irá te abraçar com naturalidade, que nem todo lugar suportará suas
novidades de ser, que nem sempre alguém irá acender uma luz diante de suas
escuridões.
Sim, tenho lembranças dos
buracos que cai, das portas que não passei, dos olhares que me ferroaram, mas
nada foi suficiente para sufocar ou aterrar uma crença de que eu poderia ouvir
a música, sacolejar na dança, vibrar com os acordes.
Não posso esperar pelo
entendimento de todos para exercer minha plenitude, mas posso deixar rolar
–algumas pedras— e ser mais alegre do que triste.
Sir Paul McCartney está no Brasil e traz com
ele seus 81 anos um jeito macio de encantar as pessoas e espalhar pelo mundo
oportunidades de exercer a leveza e a generosidade nas decisões, nas atitudes e
nos amores.
Claro, tudo regado a alguma rebeldia, um pouco de protesto e
guitarras distorcidas.
Nestes tempos tão acumulados de
erros com enervações que geraram guerras, calor e chuvas revoltados, telas que
hipnotizam e abobecem em passagens de trinta segundos, abandonos de gentes,
entoar o ‘let it be’ talvez represente alguma chance de fazermos algo
diferente, de deixar passar o que passa e a agarrar, mudar, reaprumar o que nos
importa.
JAIRO MARQUES - jornalista, especialista em jornalismo social pela PUC-SP.