Mais de 55 mil empregados que se autointitulam
"Googlers" lembram atenienses e espartanos.
Possuidores
de uma tecnologia nova para sua época --o alfabeto fonético--, os gregos
antigos compilaram boa parte do conhecimento até então registrado na forma
oral, o que aumentou sua influência sobre os povos do Mediterrâneo.
Organizados em pólis, cidades-Estado autônomas que
compartilhavam da mesma língua, crenças e sistemas administrativos, eles não
eram controlados por um governante, mas pela comunidade.
Hoje, enquanto o mundo digital torna obsoletas algumas questões
materiais, latifúndios cibernéticos tendem a ser como as antigas
cidades-Estado, ampliando a influência política para além do esperado de uma
empresa de tecnologia.
O Google é um bom exemplo. Longe da start-up que um dia foi, a
empresa hoje tem indicadores dignos de um país.
Como conglomerado de mídia, é responsável por mais de um terço
do mercado publicitário digital, com mais de 1 milhão de anunciantes promovendo
mais de 1 bilhão de produtos em cerca de 2 milhões de veículos, rendendo mais
de US$ 10 bilhões no ano passado.
Como empresa de tecnologia, produtos como o Gmail têm mais de
500 mil usuários e sua suíte de aplicativos de escritório, o Drive, mais de 100
milhões. Mais de 90% dos smartphones usam aplicativos Google, pouco importa o
sistema.
Como empresa de inteligência, analisa as métricas de 15 milhões
de sites, mapeia e fotografa mais de 3.000 cidades em 51 países.
Seu sistema de tradução converte mais de 80 idiomas, e as buscas
chegam perto dos 15 bilhões mensais. Até mesmo como rede social, pequena quando
comparada ao Facebook, tem mais de 300 milhões de usuários ativos por mês, um
terço deles na China.
O impacto do Google é tão grande que, na última vez em que ele
ficou fora do ar por cinco minutos, o tráfego da internet caiu em 40%.
Carros, robôs, computadores e outras tecnologias tendem a
expandir as operações comerciais para além dos mais de cem países e milhões de
empresas de hoje.
Com o poder econômico e o tamanho das bases de dados, cresce a
força política. O tamanho, ambições e expansão do Google demandam atenção.
Diferentemente de multinacionais como Unilever ou Microsoft, sua influência é
tanto comercial quanto ideológica.
Seus cerca de 55 mil empregados autointitulados
"Googlers" lembram os atenienses e espartanos, que definiam sua
nacionalidade pela pólis com que se identificavam.
Da mesma forma que as pólis expandiram sua influência cultural e
econômica durante o Helenismo, impondo sua visão das artes, ciências,
matemática, literatura e música sobre as culturas bárbaras, o Google hoje
distribui sua ideologia pelo mundo. Sua relação com os países em que funciona
está cada vez mais parecida com a que a China tem com Hong Kong e Macau, um
misto de amor e ódio.
Nós, como os autores que combateram a digitalização dos livros e
os produtores de conteúdo que combateram o YouTube, somos esses novos bárbaros.
Até que ponto receberemos os invasores de braços abertos,
trocando a riqueza de nossos dados pessoais pelos espelhinhos e miçangas de suas
tecnologias?
Luli Radfahrer -
professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes)
da USP, trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das
maiores agências de publicidade do país;
Fonte: Folha Online