A memória nos dá a chance de crescer com os erros e ter um futuro melhor


Cartaz do filme "No Limite do Amanhã", em que o personagem principal 

morre múltiplas vezes

Que tal ter uma chance de recomeçar um dia malfadado –especialmente se este for o dia em que você morre? No filme "No Limite do Amanhã", que acabou ficando mais conhecido pelo subtítulo "Viva. Morra. Repita", o recomeço a cada morte acontece com o personagem principal, major Cage, vivido por Tom Cruise, como efeito colateral de ter morrido coberto com o sangue do alienígena que ele acabara de explodir.

O recurso, que torna o filme interessante (é um dos meus filmes de ficção científica favoritos), arrancava gargalhadas do meu filho ontem à noite cada vez que Cage, moribundo ou apenas ferido, mas incapaz de continuar a missão, era sumariamente executado pela parceira –e assim o dia recomeçava, com uma nova chance de vencer os alienígenas.

Mas o ciclo só funciona porque o personagem contaminado de sangue alienígena e somente ele retém a memória de tudo o que aconteceu no dia de cada uma das suas (muitas) mortes anteriores. O contraste com os demais personagens, para quem o dia que recomeça é apenas mais um novo dia, é uma alegoria excelente do que nos dota de uma história pessoal: não apenas um cérebro, mas um cérebro com memória.

É graças à capacidade de ser modificado de acordo com sua própria atividade, ao sabor dos acontecimentos, que o cérebro tem memória. Com a licença poética da ficção, o cérebro de todos, menos o de Cage, é restaurado ao seu estado de origem no dia que recomeça repetidas vezes. Cage, ao contrário, mantém a vantagem que todos nós temos na vida real: transportar o aprendizado do dia anterior para o dia seguinte.

É por isso que recomeços, na vida real, são em geral muito mais bacanas e ricos do que na ficção. Muda-se para uma nova cidade, mas não se esquecem as lições aprendidas na anterior; troca-se de emprego, mas não se perdem todas as habilidades, manhas e truques desenvolvidos com a experiência passada; novas amizades são feitas, mas isso não torna as anteriores menos importantes ou queridas. Pelo contrário: as novas amizades se beneficiam de nossos erros e acertos do passado.

Graças à memória, nossa bagagem só faz crescer ao longo da vida. Mesmo os acontecimentos ruins, as pessoas que não merecem lugar na memória, os dissabores têm seu valor, como marcos que nos dizem "evite que isso aconteça de novo". Recomeçar, na vida real, é começar mais uma vez –e melhor. 

Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante)

Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com

Tel: 11 5044-4774/11 5531-2118 | suporte@suporteconsult.com.br