Uma dor chamada
fantasma
Por que algumas pessoas sentem membros que já não existem?
“Pés, para que os quero se tenho asas para voar.” A frase
acompanha um desenho de Frida Kahlo feito dias antes de ela ter a perna direita
amputada.
Em tempos de Paralimpíadas, a performance impressionante de atletas
que perderam um membro chama mais atenção para esse tipo de deficiência.
Para
muitas pessoas, a experiência de amputação pode se desdobrar em situações que a
ciência ainda busca compreender.
Em torno de 80% dos casos em que um membro ou órgão é retirado,
seja de forma planejada ou em cirurgias de emergência, a pessoa continua
sentindo como se ele existisse.
Isso se chama sensação do membro fantasma: a
presença daquela parte do corpo que se foi. Hoje, sabe-se que isso acontece
devido a mudanças fisiológicas decorrentes da amputação.
A incidência dessa sensação é maior quando a experiência é
traumática, explica Bárbara Pires, profissional de educação física e doutora em
ciências médicas pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, Idor.
Além disso, a
literatura é mais rica em relatos que se referem a membros, como braços e
pernas, a respeito dos quais os pacientes mencionam coceira, formigamento,
pressão e até mesmo movimento –voluntário ou involuntário.
Uma outra
manifestação é a dor, que costuma ser crônica e pode durar anos.
Algumas hipóteses científicas buscam entender os mecanismos
associados a ela e por que ocorre: as hipóteses ditas periféricas, as centrais
e as contextuais.
As periféricas tentam destrinchar o fenômeno do ponto de
vista da periferia corporal.
No coto da amputação, alguns pacientes desenvolvem
neuromas, pequenos nódulos no nervo que podem desencadear a dor.
No entanto, segundo Pires, hoje essa sensação é mais bem
explicada por mudanças que ocorrem no nível do sistema nervoso central.
“Mesmo
quando o coto regenera perfeitamente e não há nada na periferia corporal que
possa justificá-la, é possível que a pessoa a sinta”, ela observa.
Portanto, se
as hipóteses periféricas não contemplam tudo, do cérebro derivam as chamadas
hipóteses centrais.
Afinal, um pedaço do corpo foi retirado, mas a área
cerebral que o representa, não. Para a pesquisadora, é importante não descartar
o terceiro grupo: o das hipóteses contextuais.
Entram em cena condições
psicológicas, como ansiedade e depressão, que não são descritas como a causa da
dor, mas que podem afetar, por exemplo, a intensidade.
Se a resposta está no cérebro, analgésicos no local do coto ou
por outras vias não apresentam bons resultados. As dores costumam retornar, e o
paciente volta a ser medicado com doses cada vez maiores.
Não há um tratamento
certeiro, mas algumas terapias aliviam os sintomas, como a famosa terapia do
espelho, criada pelo neurocientista indiano Vilayanur Ramachandran.
Nela, o
paciente posiciona o espelho de tal forma no meio do corpo que a parte espelhada
fica de frente para o membro sadio.
Ao realizar o movimento, a pessoa engana o
cérebro, como se a perna ou o braço refletido fosse o membro amputado.
No doutorado, concluído em 2020, Pires se perguntou se
conseguiria modular a atividade cerebral das regiões relacionadas à sensação e
à dor fantasmas.
Em conjunto com o grupo de especialistas do Idor, ela realizou
um teste com pessoas amputadas de membro superior utilizando uma técnica de
neuroimagem: o neurofeedback por ressonância magnética funcional.
De forma
secundária, analisou se a modulação da atividade cerebral afetava a dor.
Se é possível que a sensação ocorra por existir alguma alteração
nas representações cerebrais do membro retirado, então vale a pena observar o
cérebro ao vivo.
Um dos pedidos da pesquisadora aos participantes do estudo era
justamente que mexessem o membro fantasma dentro do aparelho de ressonância.
Enquanto isso, uma equipe verificava a atividade cerebral.
O trabalho contou
com a orientação das cientistas Fernanda Tovar-Moll e Erika Rodrigues, além de
ter sido realizado com o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia, Into,
referência no Sistema Único de Saúde.
“A partir do melhor entendimento dos mecanismos fisiológicos por
trás desses fenômenos, podemos validar ou reforçar hipóteses e talvez
desenvolver tratamentos mais eficazes futuramente”, afirma Pires.
O artigo da
tese está em fase de submissão, passando por avaliação, e em breve novas
perspectivas ajudarão a construir o conhecimento científico acerca desses
fantasmas.
RENATA FONTANETTO - jornalista e mestra em divulgação científica pela Fiocruz.