Graças ao bom Deus, o Brasil
é um país onde qualquer pequeno problema pode transformar-se numa grande
paixão. Inventa (ou copia) uma ideia. Com um pouco de "bate caixa"
transforma-a num modismo. Com um pouco mais de esforço consegue-se colocá-la na
Constituição. Aí pronto. Está tudo resolvido! Basta uma lei complementar para
regulá-la e a nação encontrará o caminho da felicidade. Se possível sem
trabalho, como no "pays de Cocagne"...
Talvez haja algum exagero
nessa descrição. Mas não será muito. É o caso, por exemplo, do imposto sobre as
grandes fortunas. O texto constitucional diz: "Art.153. Compete à União
instituir impostos sobre: VII - grandes fortunas, nos termos de lei
complementar".
O cidadão brasileiro imagina
que esse item (como tudo o mais do sistema tributário) foi produto de uma longa
e meditada discussão, onde se ouviram professores de finanças, historiadores,
economistas etc. Está convencido de que tal "proposição" foi produto
de uma análise cuidadosa das experiências de outros países: que representa a
"última palavra" em termos da justiça tributária. Tem certeza que os
técnicos nacionais e estrangeiros convocados pela Constituinte foram ouvidos
com atenção e mostraram conclusivamente que:
1) quase todos os países
estão adotando impostos sobre as grandes fortunas; e
2) todo sistema tributário
moderno se apoia sobre esse tipo de imposto.
A regulamentação
adequada do IR seria mais eficiente
No Reino Unido, a mudança do
sistema tributário levou três anos de intensos estudos da Câmara dos Comuns e
foram ouvidos dezenas de especialistas ingleses, americanos, suecos e
italianos. Nos EUA, a mudança do sistema tributário levou mais do que isso.
Na Suécia, o problema foi
tratado de forma quase religiosa.
No Brasil não aconteceu nada
disso. Em poucos dias um grupo de pessoas inteligentes, mas com pouca afinidade
com qualquer sistema tributário, costurou o nosso. A coisa só não ficou pior
graças à diligência e prudência do relator e do presidente da comissão.
A verdadeira história daquele
dispositivo é a seguinte: como não havia a menor certeza sobre ele; sobre o que
significava; sobre o que pretendia; se era uma necessidade, ou um ato de
vontade, estabeleceu-se uma polêmica. Para alguns, ele parecia um
"avanço", pois um imposto sobre as grandes fortunas há de ser um
avanço.
Por outro lado, não parecia
tão fácil saber em que direção era o "avanço".
Logo, acordou-se o seguinte:
como a Constituição não pode esperar, porque o povo está lá fora reclamando que
aqui não trabalhamos, vamos acolher a ideia, mas acrescentar "de acordo
com lei complementar", porque isso dará tempo para que se estude melhor a
sugestão. Em poucas palavras: vamos empurrá-lo com a barriga para ver como é
que fica...
É claro que um imposto sobre
o patrimônio pode ser um complemento para dar maior justiça tributária ao
imposto de renda.
Mas é claro, também, que ele
apresenta problemas graves e sua implementação é duvidosa. Não há nada que uma
regulamentação adequada do imposto de renda não possa fazer com maior justiça e
com maior eficiência.
O nível de renda pode não ser
uma medida exata da capacidade de pagar.
Um cidadão com uma renda de
trabalho de 100 e outro com uma renda de capital de 100, obtida com um
patrimônio de 1.000 não têm, claramente, a mesma capacidade de pagar, pois o
patrimônio dá ao segundo maior segurança e maiores oportunidades.
O que o imposto sobre o
patrimônio líquido pretende é maior equidade horizontal. É por isso que nos
países europeus onde ele tem tradição (Alemanha, Dinamarca, Noruega, Holanda,
Suécia e França) a sua alíquota é extremamente baixa (a mais alta taxa marginal
não passa de 2,5%) e a sua importância na receita geral é desprezível (em torno
de 1%).
Em 1974, o Partido
Trabalhista tentou implementá-lo na Inglaterra. O resultado dos estudos foram
muito duvidosos: depois de um ano de trabalho, a comissão apresentou um
relatório em quatro volumes com mais de 2.000 páginas e as conclusões se
resumem a dois parágrafos, porque não se chegou a um consenso. O imposto foi
esquecido.
A confusão aumenta quando as
pessoas imaginam que o imposto sobre as grandes fortunas vai cumprir um papel
de distribuição da propriedade, pois seu pagamento obrigará a venda do patrimônio
para satisfazê-lo.
O imposto sobre o patrimônio
líquido não tem essa função em nenhum país em que está instituído (menos de
20). Se esse for o objetivo, o imposto será um desastre, pois teria efeitos
catastróficos sobre o nível de poupança e de investimentos privados. Acabará
por prejudicar o desenvolvimento econômico e, portanto, tornando os pobres
ainda mais pobres.
Se o objetivo for diminuir as
desigualdades, o que é muito saudável e civilizado, existem meios mais
eficientes para fazê-lo e que não comprometem o processo produtivo.
Antonio Delfim Netto - professor
emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.
Fonte: jornal Valor