O lado negro da internet das coisas


Imagine a situação. Você vai ao banheiro. Com pressa, sai sem lavar as mãos. Ao tentar abrir a porta, nota que ela se trancou automaticamente, e um alarme soa. Só então você entende: ou lava as mãos, pressionando a alavanca na saboneteira, ou a porta não se abrirá.

 

Parece ficção, mas produtos assim já existem. O Safegard Germ Alarm é uma saboneteira que faz exatamente isso. Aciona um comando digital se percebe que você está deixando o banheiro sem lavar as mãos. Esse comando pode ser usado para qualquer coisa, como tocar um alarme ou trancar a porta.

Essa é uma das facetas menos visíveis da chamada "internet das coisas": seu uso para controle social. Agora, objetos comuns irão se conectar à rede. Geladeiras, ventiladores, ferros de passar, fechaduras, carros, cadeiras e até nossas camas ficarão cheios de sensores observando nosso comportamento. Poderão agir automaticamente, tomando decisões. A geladeira avisará ao supermercado que o leite acabou. A cama contará ao plano de saúde que você está dormindo pouco.

 

Essa tecnologia não é neutra. Trará visões políticas embutidas. Em artigo no jornal "The New York Times", o presidente do Google, Eric Schmidt, sugeriu a criação de "corretores automáticos" para discursos de ódio e assédio na internet. Nas interfaces de voz, esse tipo de corretor já é praxe. Palavras de baixo calão ditas para assistentes virtuais são autocorrigidas e substituídas por caracteres gráficos.

E como ficam os "corretores de comportamento"?

 

Um exemplo são as pulseiras conectadas para atividades físicas, que incentivam exercícios e boa alimentação, combatendo o sedentarismo e a obesidade.

Uma delas se chama Pavlok (o nome não poderia ser melhor) e dá choques elétricos no usuário.

Três aplicativos vêm de fábrica. Um se chama Wake Up, um despertador na base do choque. Outro tem o nome de Productive e monitora seus hábitos na rede, dando um choque quando você se desvia do trabalho. Há também o Fit, que acompanha sua alimentação e exercícios, punindo o usuário se ele fugir das suas metas. O lema da empresa é: "Pavlok não apenas monitora, mas transforma quem você é".

Esse tipo de arranjo coloca sobre o indivíduo todo o peso e responsabilidade por suas "falhas". Isso nos leva a ignorar as causas mais profundas para várias dessas questões, como pobreza, doenças ou ignorância.

 

Nas palavras do escritor Eugeny Morozov: "A política deixa de ser uma aventura comum para se tornar um espetáculo individualista destinado ao consumidor, no qual confiamos a busca de soluções sociais para os aplicativos".

Uma em cada três pessoas que usam banheiros públicos não lava as mãos antes de sair. Pode acreditar: trancar a porta automaticamente, impedindo que saiam dali, não resolve o problema. Muitas tiranias surgem do desejo de fazer o bem.

 

Ronaldo Lemos - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org), é mestre em direito por Harvard e doutor em direito pela USP. Pesquisador e representante do MIT Media Lab no Bras
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