Não sei como aparecia comida boa a toda hora.
Ninguém era rico, mas daqui e mais dali surgia um única jabuticaba no pé que a
fazia melhor e mais tentadora. E o almoço refogando, um alho amassado, uma
cebola bem picada, o cheiro da pele de frango pousando na própria gordura,
alguém já se apressando a pôr a mesa, o barulho dos talheres.
Tudo isso é motivador. O Olivier Anquier conta que
na sua primeira pousada, para que o pessoal não se atrasasse muito para o
almoço, amassava um alho e fritava, era tiro e queda, todo mundo tomava banho
mais depressa.
E na escola trocávamos as lancheiras, aquela de
couro duro e cheiro de cominho velho, e de lá de dentro saíam as coisas mais
incríveis como sanduíches de ovo tão amassados que não poderiam ser mais finos
e cenouras cruas inteiras com folhas e tudo. E, às vezes, uma sorte inaudita,
um sanduíche de barra de chocolate com uvas frescas. No almoço nem sempre era
galinha, tinha peixe frito e o formato do bicho e o medo das espinhas era
sempre um encanto a mais.
E a rua. Nada melhor que aqueles homens que
passavam com um tambor, batendo uma matraca e o nosso coração parava. Era o
homem do biju, aqueles canudinhos frágeis como a vida que se quebravam ao menor
sopro. Grudava no céu da boca, subia ao céu ornado de anjos. E o vendedor, não
sei porque, era sempre triste, talvez por perder muito no jogo.
Acabada a compra, rolava uma roleta e se o cliente
ganhasse não pagava nada, talvez esse o segredo de nossa felicidade e da mágoa
dele.
Nas férias da Bahia nem bem acordávamos e um monte
de moleques chegavam com cestas vendendo pastel de banana com açúcar.
Para comer algumas coisas era preciso andar como um
saquinho transparente, vermelho, de pipoca de arroz, que escondia dentro um
bonequinho de plástico cor de rosa. Ah, e as balas de goma. E a Paulistinha
—aquele gosto fino de perfurar o cérebro, transformada em agulhas perigosas.
Não sei, havia sempre uma promessa, eles sabiam das
coisas, um jogo completo de xícaras e bule para chocolate, chaleiras que jamais
alguém vira, mas que fabricavam a esperança de nossos dias. Era alguma
propaganda de achocolatado.
E os atores de cinema numa pequena foto em preto e
branco, feita para preencher álbuns que não existiam. Só a vista dos bigodes de
Clark Gable já nos amadurecia anos. Parecia nosso pai, mas não era nosso pai e
nos casaríamos com ele um dia.
É, de verdade, comer era bom e nem era preciso
espetar uma cebolinha verde bem no topo do arroz para dar graça.
Nina Horte - escritora e colunista de gastronomia,
formada em Educação pela USP e dona do Buffet Ginger.
Fonte: coluna jornal FSP