Alguns pesquisadores ignoram os
melhores resultados e instauram conflito de legitimidade
Nessas
últimas semanas temos vivido um antagonismo tenaz sobre como debelar a
Covid-19. Na carência de vacinas ou tratamento validados, a experiência de países asiáticos e europeus
ressaltou a importância do isolamento social na luta contra a transmissão do coronavírus e a
exaustão de leitos hospitalares.
Por
outro lado, a hipótese que parece deliciar a corte brasileira privilegia a imunidade de rebanho como a única maneira de salvar a economia da nação.
Para
tanto, ignorando as milhões de mortes que assolariam o país, o governo federal
invoca o retorno de atividades, o não respeito de medidas de distanciamento
social e os palpites científicos, tais como o uso da cloroquina e seus derivados, defendido por uma parcela pequena de
pesquisadores ególatras que debocham de questões de interesse geral, atiçando
disputas entre a direita e a esquerda ou insultando inteligências discordantes.
Tantas
já são as ameaças da Covid-19 e suas sequelas para a saúde humana e para a economia
mundial! Não menos graves são os enfoques do poder político que visam fazer
crer que perícias rigorosas justificam suas decisões.
Ora,
controvérsias científicas deveriam levar pesquisadores a procurar a unanimidade
para melhor guiar o poder público e a população que querem ser tranquilizados.
Porém, nem sempre é simples chegar a uma concordância quando enfermidades mal
conhecidas apavoram o mundo, causando divergências de proporções jamais vistas.
Enquanto
é perfeitamente compreensível que governos tomem providências para fomentar a
saúde pública, que fique bem claro que esse não é o papel de cientistas, mesmo
que sejam usados para dar suporte e garantias a resoluções políticas.
Poder-se-ia esperar que cientistas sempre forneçam à humanidade um conhecimento
realista e sólido à luz da evolução, respondendo ao desejo de conhecimento
fidedigno do mundo, em oposição às respostas visionárias e ilusórias oferecidas
por ideologias, mitos e religiões. Entretanto, em que medida todos eles fazem
escolhas livres e esclarecidas?
É
lamentável, por exemplo, observar a perda da autocrítica de certos cientistas
que, diante do coronavírus, perderam o brilho de suas carreiras, estabelecendo
prováveis pequenos arranjos consigo mesmos ou com o poder reinante. O que fazer
quando se percebe que alguns, supostamente aconselhando governantes de maneira
imparcial, possam trabalhar para interesses próprios?
É
o que se vê com os que se convenceram que certos medicamentos serão benéficos
para pacientes de Covid-19, mesmo negligenciando a vasta experiência que
demonstra o contrário. Vivendo em dissonância cognitiva, instauram um conflito
de legitimidade com seus pares, passam a ser suspeitos de defender interesses
específicos em detrimento do interesse geral, questionando os melhores
resultados estabelecidos com literatura manipulada.
É
claro que, a partir daí, decisões políticas de um governo caótico, ao invés de
se basear em resultados científicos sólidos, são respaldadas por fraudes
ideológicas resultantes da acomodação de dados, em benefício da vaidade e em
desfavor da vida.
Que
tipo de imagem distorcida a ciência difunde aos olhos do povo quando cientistas
não compartilham necessariamente a mesma visão? Como isso afetará a relação
entre os pares no pós-pandemia? Difícil prever, mas enquanto o apetite pelo
conhecimento real não for compartilhado, pseudocientistas continuarão a se
julgar gênios e persistirão motivados pela paixão do próprio ego.
Em
contrapartida, os verdadeiros cientistas assumirão a responsabilidade de
desvendar a natureza e encontrar legítimas soluções. Esperemos que o povo e os
governos responsáveis saberão quem seguir.
Paola Minoprio - diretora de pesquisa do Instituto Pasteur de Paris,
coordenadora da Plataforma Cientifica Pasteur – USP, conselheira de comércio
exterior da França.
Fonte: UOL