Competidores da China no Campeonato dos Quatro
Continentes de patinação no gelo, na Coreia do Sul
A
conferência, num resort de esqui em Keystone, Colorado, só começava à noite,
então fui assuntar. Esqui, nem pensar, pois me lançar ribanceira abaixo sobre
palitinhos em velocidade me soa como receita para quebrar perna e tornozelo.
Mas patinar no gelo um dia fez parte do meu repertório, então fui lá testar a
memória dos meus circuitos motores.
A
parte sobre rapidamente recuperar uma capacidade desenvolvida na infância,
mesmo na minha idade já razoavelmente avançada, é o que menos me impressiona no
que concerne a humanos equilibrados sobre esquis, patins ou rodas.
A
parte realmente impressionante é que não há argumento de design inteligente que
explique como é que seres que até hoje se desenvolvem como quadrúpedes (que
somos, basta ver humanos novinhos em deslocamento rastejante), além de se
atreverem a andar por aí equilibrados em dois palitos articulados que servem de
pernas (tente botar de pé uma batata espetada em dois pauzinhos e você
entenderá o problema), ainda resolvem que é uma boa ideia se equilibrar sobre
duas lâminas de aço que não param, apenas deslizam, sobre gelo –e conseguem.
Mal conseguem e já começam a abusar, correndo de costas, perseguindo tocos de
metal com tacos de madeira e, por que não, dando saltos e piruetas. E ainda
parecem que nasceram fazendo isso.
Não
nasceram, e justamente essa é a beleza de um sistema auto organizado como o
cérebro. Bastam uns 10 mil genes pra estabelecer uma ordem básica, uns
neurônios pra cá, umas conexões para lá, e tem-se um sistema não ainda
competente, mas pronto para ser solto no mundo e aprender (quase) tudo,
inclusive deslizar sobre lâminas de metal. O projeto é entregue incompleto, mal
saído da planta baixa, mas graças a isso o resultado sai melhor do que qualquer
design inteligente que pudesse ser encomendado: há oportunidade para inventar.
Meus antepassados certamente não foram feitos para patinar no gelo (nem para
dirigir carro ou ir à Lua), mas isso felizmente não é impedimento quase algum.
Depois
do começo titubeante, com todos os músculos dos tornozelos doloridamente
contraídos tentando manter a vertical enquanto meu cérebro experimenta um
circuito atrás do outro até reencontrar aqueles selecionados por tentativa e
erro na infância, sucesso: consigo deslizar quase graciosamente. Quase tão bem
quanto as criancinhas ao meu redor, que não têm medo algum de tentar
Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro
"Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante)
Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com