Se não usamos tecnologia para ganhar conhecimento e cultura, a culpa é nossa


À primeira vista, o crítico cultural Neil Postman, autor de “Tecnópolis”, era um tecnochato: mais um daquele grupo, comum nos dias de hoje, que pinta a tecnologia como um bem que se torna um mal quando passa a ditar as regras das sociedades humanas. 

E olha que Postman morreu em 2003, bem antes de smartphones e redes sociais dominarem nosso cotidiano. A bronca dele era com os tecnocratas e o reinado dos formulários.

O mal da tecnologia, para Postman, teria sido a enxurrada de informações que ela cria, proporciona, organiza, classifica, cataloga e, assim, nos afoga em um mar de conteúdos sempre presentes. 

Parafraseando Postman, “a vida era tão mais simples com tecnologias apenas rudimentares”. De fato, era mais simples. Mas isso não significa melhor.

O problema é que Postman colocou no mesmo saco informação e conhecimento. 

A diferença é algo que cérebros são craques em fazer —especialmente o nosso, cheio de neurônios corticais, possíveis exatamente graças a, veja só, uma tecnologia: a transformação da comida antes de entrar na boca, vulgarmente conhecida como “cozinha”, que mais do que dobra a energia transferível dos alimentos para o corpo.

Neurônios corticais, organizados em redes como carrosséis em movimento perpétuo enquanto houver vida, transmitem e recebem sinais ou eventos que, à medida que fazem sentido e ganham significado através da relação com o comportamento, viram informação. 

E informação, conforme Postman disse, pode ser útil, mas em geral não serve para nada.

Aplicada, a informação que resolve problemas práticos e conceituais, gesta novas ideias, abre possibilidades e torna a vida mais flexível ganha outro nome: conhecimento.

Além de os 16 bilhões de neurônios corticais humanos nos proporcionarem uma capacidade ímpar de processamento de sinais e, portanto, de informação, eles também vêm com uma vida mais longa, cheia de oportunidades para aprender com nossos pais e avós, adicionar nossos próprios elementos e então passar tudo adiante. 

O resultado é uma espécie cujas habilidades vão além da pura biologia do processamento de sinais: nós lidamos com informação, sim, mas com base nela, geramos conhecimento.

Esta seria minha resposta a Postman. Sim, ficar só na informação é limitante, mas não é culpa da tecnologia. 

Se não sabemos fazer bom uso dela para ganharmos conhecimento e cultura, a culpa é nossa.

Como o ser humano deixou de ser apenas mais um primata, ainda que aquele com o maior número de neurônios corticais, e passou a ser o que somos hoje? 

Enquanto meus colegas continuam em busca dos genes que nos tornam “biologicamente únicos”, eu tenho me dedicado a investigar outra ideia, menos biológica.

Minha hipótese é que uma vez que o cérebro dos nossos antepassados desenvolveu tecnologia suficiente para pré-processar alimentos antes de leva-los à boca, burlou as regras da economia nutricional, passou a comportar um tantão de neurônios corticais que ninguém mais consegue sustentar, e tecnologia e cultura afloraram —e só assim nos tornamos os bichos modernos que somos hoje.

A distinção entre informação e conhecimento é fundamental para não cair no erro fácil dos tecnochatos.

A sequência de sinais ... --- ... não é mais do que três pontos, um espaço, três traços, um espaço, e outros três pontos, a não ser que, munido do código criado por Samuel Morse, o leitor saiba que o conjunto contém a informação “SOS”. 

E que isso não significa mais do que três letras, a não ser que o leitor tenha experiência com o uso possível dessa informação: um pedido de socorro, abreviação de Save Our Souls.

SUZANA HERCULANO-HOUZEL - Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Coluna jornal FSP


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