O quadro político e econômico
agrava-se desde o fim do primeiro mandato de Lula. A revelação da sistemática
compra de apoio ao governo por meio de um esquema de desvio de recursos
públicos - o "mensalão" - foi um marco divisor. Ainda não estava
claro o grau do estrago que a ocupação do Estado por militantes e simpatizantes
viria a fazer, mas estava quebrado o encanto.
A condução da política
macroeconômica sofreu uma inflexão a partir de 2008. Sob pretexto de praticar
uma política anticíclica keynesiana - que a grande crise financeira justificava
nos países centrais, mas não nos países periféricos -, acelerou-se o processo
de expansão dos gastos diretos e indiretos, explícitos e implícitos, do setor
público. A política macroeconômica perdeu toda a racionalidade e tornou-se
manifestamente voluntarista.
O desajuste fiscal e os
desmandos administrativos, associados à distribuição de benefícios demagógicos,
de vantagens e subsídios, ficaram mascarados pelo ciclo de alta das
commodities, pelo o ganho nos termos de troca com o exterior. O País cresceu
relativamente pouco, mas enriqueceu muito. A riqueza não depende só do
crescimento, mas também das expectativas. O valor dos ativos, das empresas e
dos imóveis, depende das expectativas. Com as expectativas favoráveis, o
aumento da riqueza foi muito superior ao crescimento da renda. A reversão
levará a uma correspondente queda da riqueza.
No ano passado, a aceleração da
piora nas condições tanto econômicas como políticas não deu tempo para que as
percepções pudessem acompanhar o agravamento da realidade. As eleições
contribuíram para atrasar a convergência das expectativas. O clima de campanha
eleitoral tornou difícil separar os fatos da propaganda. O País saiu das
eleições dividido e com um fosso entre as condições objetivas e a percepção da
realidade. O choque da realidade está agora em curso.
No ano passado, a economia não
cresceu, o superávit fiscal primário desapareceu e o déficit externo passou de
4% do produto interno bruto (PIB). Apesar dos preços administrados defasados e
dos juros em alta, a inflação vai superar o teto da meta. A infraestrutura está
obsoleta e o racionamento de água e energia elétrica será inevitável. A
Petrobrás está paralisada, incapaz de acessar os mercados de capitais. Sua
viabilidade está ameaçada. Os investimentos privados devem colapsar.
A surpreendente nomeação de
Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda impediu que o ajuste das expectativas
levasse a uma crise cambial e financeira. Sua presença foi crucial para que a
crise não explodisse com toda a sua força logo nos primeiros dias do segundo
mandato de Dilma Rousseff. O PT poderia então explorar mais facilmente a tese
da sabotagem dos "mercados" a um governo que acabara de ser
democraticamente eleito. Isolado num Ministério de inédita incompetência, Levy
corre o risco em alguns meses se defrontar com apenas duas alternativas: a
demissão, diante da inviabilidade política do ajuste necessário, ou a
desmoralização.
Some-se às dificuldades
macroeconômicas o racionamento de água e energia para que as perspectivas se
configurem dramáticas. O racionamento racional deveria considerar as
repercussões do corte para os diferentes setores. Para minimizar o impacto
sobre o PIB os cortes deveriam ser definidos a partir da matriz de insumos-produtos.
Numa economia de guerra, que exija o racionamento de bens essenciais, não é
possível utilizar apenas o sistema de preços para alocar recursos. O
racionamento planejado exige, pois, planejamento e execução centralizada, o que
não pode prescindir de autoridade e comando.
O País está acéfalo. O
Executivo, atordoado e acuado, está aparentemente preocupado exclusivamente em
minimizar as possibilidades de impeachment. Os quadros do serviço público estão
desmoralizados e desmotivados. A percepção popular do Congresso Nacional,
envolvido no esquema da corrupção sistematizada pelo governo na Petrobrás,
nunca foi tão negativa. Desmoralizado com a população, o Legislativo corre
ainda o risco de colisão com o Judiciário. Não há novas lideranças nem sinais
de que possam surgir da política partidária, cujos canais estão entupidos. Dada
a desmoralização da política, abre-se a possibilidade de lideranças externas a
ela, populistas e inimigas das instituições.
A combinação da economia
submetida a um racionamento drástico com a falta de autoridade institucional é
o caminho para se chegar aos chamados "Failed States". Caminho que a
Venezuela parece ter começado a trilhar e no qual países como a Síria, o Iraque
e o Afeganistão, entre outros, estão avançados. Sem autoridade institucional
constituída e reconhecida, forças paralelas passam a controlar o racionamento e
os mercados negros. Numa fase aguda, diante da revolta popular e da
generalização dos saques, surgem milícias armadas, inicialmente para vender
segurança, mas que se transformam em poderes paralelos.
Entre os "Failed
States" e a situação brasileira ainda há uma grande distância, mas mesmo
que não sejamos pessimistas o horizonte não é promissor. Na melhor das
hipóteses, teremos quatro anos de um governo acuado e paralisado, diante da
pior crise política e econômica em décadas. A possibilidade de um tumultuado
impeachment da presidente não pode ser descartada. Em tese, basta o fundamento
jurídico para o impeachment, mas na prática é preciso o apoio político "das
ruas".
Diante da gravidade do quadro,
não é hora de dividir, mas de reconciliar o País em torno de uma coalizão
suprapartidária, com apoio de todos os segmentos da sociedade. É preciso
reconstruir o Estado, resgatar a capacidade de formular e implementar políticas
para enfrentar a crise. Infelizmente, parecemos caminhar no sentido oposto, o
da radicalização da divisão do País.
André Lara Resende –
economista, ex-presidente do BNDES
Fonte: jornal O
Estado de S. Paulo