Um jornalista tem nas mãos,
com exclusividade, uma informação explosiva. Tem certeza de que os dados são
verdadeiros. Por que não publica tudo imediatamente?
O
repórter Fernando Rodrigues, único no Brasil a ter acesso integral à lista do
escândalo conhecido como SwissLeaks – o vazamento das contas secretas do banco
HSBC na Suíça –, já havia exposto em seu blog, em 12/2, os
motivos pelos quais não revelava a relação completa dos brasileiros envolvidos
no caso. A julgar pelos comentários recebidos, não convenceu muito. A
entrevista concedida a João Paulo Charleaux, publicada no site Vice na
quinta-feira (5/3), fornece mais elementos para uma discussão sobre a ética em
torno desses procedimentos. Mas não só: permite pensar também sobre certa
concepção mais geral a respeito do jornalismo e da sociedade.
Rodrigues obteve a lista por
integrar o ICIJ (International Consortium of Investigative Journalism), que vem
trabalhando sobre o caso HSBC desde fins do ano passado. Diz que não divulga a
relação integral, de 8.667 nomes, porque não quer expor pessoas que podem ter
cumprido todos os trâmites legais dessa transação financeira.
“Aparte jornalística da
apuração tem limites fixados pela lei. Os jornalistas podem ir até onde o
ofício permite. A partir daí, a outra parte sempre terá de ser apurada pelos
órgãos de controle do governo. Quais dessas contas foram declaradas à Receita
Federal do Brasil? Ninguém tem resposta a essa pergunta, com exceção do
governo. O governo é quem tem os meios para pesquisar”.
Sua resposta poderia ser tida
como um modelo de procedimento ético, por mais que salte aos olhos que a nossa
imprensa, de modo geral, está longe de seguir esse padrão. Este foi, aliás, um
dos motivos pelos quais se multiplicaram as críticas a respeito do silêncio da
nossa mídia em relação a esse escândalo, amplamente divulgado em grandes
jornais mundo afora. De fato, se tais cuidados fossem tomados, teríamos poupado
muitas pessoas da irreparável execração pública, em sucessivos episódios
reveladores de mau jornalismo, ontem e hoje.
Excesso
de zelo
O problema é saber se há
inocentes nessa história. Em tese, qualquer pessoa pode ter contas no exterior,
desde que as declare e pague os devidos impostos. Mas é evidente que a maioria
não tem dinheiro suficiente para habilitar-se a abrir uma conta dessas. Além do
mais, por que o faria? E qual o sentido de se declarar uma conta secreta?
Essas perguntas não são
feitas, mas acabam sendo respondidas por outras vias. Rodrigues começa por
argumentar com um hipotético – e totalmente inverossímil – “José da Silva”, um
suposto pequeno investidor, perfeito cumpridor da lei, que seria arrastado
indevidamente no rol dos fraudadores, caso a lista fosse publicada
imediatamente. Por fim, descreve o que deveria ser óbvio:
“Conversei com o
ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel. Pedi que ele especulasse o
seguinte: o senhor acha que existe uma razão para alguém do Brasil ter uma
conta numerada, sem que apareça o nome, na Suíça, para depois declarar essa
conta no Imposto de Renda? ‘Seria um situação muito inusitada. Ter uma conta
numerada na Suíça é um indício muito grande, justifica a abertura de uma
investigação’, ele respondeu. Eu não posso afirmar de maneira peremptória, mas
posso suspeitar que a maioria abriu uma conta na Suíça para não declarar ao
fisco brasileiro. Essas pessoas podem ter cometido um crime”.
Não será demais dizer que
estamos aqui diante de um exemplo típico de excesso de zelo, que leva a indagar
se o silêncio sobre a lista resulta apenas de um cuidado ético ou também, e
talvez principalmente, de uma preocupação com os interesses a serem
confrontados nesse escândalo.
Inclusive porque Rodrigues,
que antes criticara certos “professores de jornalismo” por quererem a
divulgação “indiscriminada e irresponsável” do tal José da Silva, considera
correta a divulgação dos depoimentos decorrentes de delação premiada na
cobertura da Operação Lava Jato, argumentando que tais depoimentos “tem valor
de notícia, tem interesse público”.
“É mentira? Verdade? Não sei,
mas a mídia não vai divulgar? Alguns professores de jornalismo questionam, ‘vai
divulgar uma delação premiada?’. Eu digo, ‘ora, vai esconder uma delação
premiada?’.”
Não
apenas professores de jornalismo, mas notáveis jornalistas, como Janio de
Freitas, questionaram várias vezes o próprio instituto da delação premiada.
Aqui mesmo, nesteObservatório,
alguns desses professores insistiram reiteradamente sobre o risco de distorção
resultante dos vazamentos seletivos dos depoimentos. O caso mais escandaloso
foi o da capa da Veja, às vésperas do
segundo turno da eleição para presidente. Se é mentira ou se é verdade, esta
não deveria ser uma preocupação ética elementar para qualquer jornalista, em
qualquer situação?
Generalizações
indevidas?
Indagado sobre o
comportamento distinto da mídia em casos similares, o repórter utilizou um
argumento cada vez mais comum no meio profissional: criticou o que seriam
generalizações indevidas, de tal modo que não poderíamos falar na “mídia”, pois
seria preciso verificar as diferenças de conduta entre os vários jornalistas.
De fato, Rodrigues só pode
responder por si, e sua trajetória, ademais de premiada, atesta um
comportamento rigorosamente ético. Porém, é impossível desconsiderar a
existência disso que chamamos “mídia” como estrutura: do contrário, seriam
impensáveis a sociologia e os estudos que, no caso do jornalismo, demonstram os
constrangimentos impostos pelas rotinas profissionais e os interesses que
prevalecem nos critérios editoriais das empresas.
Mas, com certeza, certas
generalizações são mesmo indevidas. Diante da pergunta sobre se o que está em
questão, neste caso do SwissLeaks, é a qualidade ética do jornalismo
brasileiro, o repórter discorda, dizendo que o Brasil “é um país infantilizado
no qual a maioria das discussões são quase sempre rasteiras, epidérmicas e inúteis”.
Ao fim da entrevista, reitera: “O Brasil é um país muito caipira,
subdesenvolvido e atrasado”.
Interesse
público
Inicialmente, Rodrigues
divulgou apenas uma relação com 11 nomes, todos ligados à Operação Lava Jato,
argumentando com um critério jornalístico: “É o assunto que as pessoas estão
vendo mais”.
É redundante dizer que os
assuntos mais em evidência atraem mais a atenção, o que acaba criando um
círculo vicioso que põe na sombra outros assuntos, talvez inconvenientes. E,
pior que isso, pode levar a descartar pistas de investigação que no futuro se
revelarão relevantes.
“Se eu puder provar que José
da Silva não pagou Imposto de Renda, aí tem interesse público”, diz o
jornalista. Mas por que desconfiaria dele? “É empreiteiro? Tem obra pública?
Tem expressão nacional? Se não, por que eu vou ligar para o José da
Silva?”
Não custaria lembrar que
Watergate, no início, era só uma invasão a um escritório do Partido Democrata.
Ao
divulgar a entrevista em seu mural no Facebook, João Paulo Charleaux publicou
um trecho extra que ajuda a entender “um dos nós da investigação”, no qual
Rodrigues detalha algo que já havia informado em seu blog (ver aqui):
“Quando saiu o primeiro
relatório do ICIJ, um relatório ainda pequeno, com erros e imprecisões, eu
peguei um pequeno extrato disso, equivalente a menos de 3% do total de nomes
vinculados ao Brasil e, de maneira muito reservada, num acordo jornalístico de
interesse público, mostrei ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades
Financeiras), que havia uma suspeita ali de possível evasão de divisas,
possível sonegação fiscal. O Coaf não fez nada. O presidente do Coaf, Antônio Gustavo
Rodrigues, não fez nada. Por quê? Não sei. Acho que foi um grave erro dele”.
E prossegue:
“A minha proposta ao Coaf
era: ‘veja esses dados e verifique se há algum alerta em relação a essas
pessoas, se elas declararam nos seus impostos de renda essas contas no exterior
no período em questão. Feito isso, comunique ao jornalista, sem precisar
quebrar o sigilo, sem dizer especificamente quem, mas comunique pelo menos se a
maioria não declarou esses investimentos no imposto de renda’. Se eu soubesse
que uns 90% daqueles nomes não declararam as contas no Imposto de Renda, eu
teria segurança absoluta para começar a trabalhar uma eventual divulgação de
nomes (...). Fiz isso de boa fé, fazendo bom jornalismo e fazendo propostas
absolutamente legítimas para estes agentes que foram protagonistas de desídia,
preguiça e talvez má-fé. Essa minha tentativa foi um fracasso. Eu fracassei.
Quem perdeu mais foi o Estado por ter maus funcionários, mal preparados e
talvez desleais e criminosos”.
À parte a gravidade das
acusações, que mereceriam ser formalizadas, restaria saber como o jornalista
trabalharia caso tivesse obtido as informações desejadas, já que,
aparentemente, não teria elementos para confirmar quem estaria efetivamente
implicado em fraude: em princípio, sempre seria possível divulgar indevidamente
algum “José da Silva” constante dos eventuais 10% que teriam supostamente agido
de maneira plenamente legal.
A
mídia na lista?
No seu blog, Rodrigues
afirmou que “aimensa maioria dos nomes contidos na listagem brasileira do HSBC
da Suíça é desconhecida do grande público. Há uma minoria de pessoas
conhecidas. Empresários, banqueiros, artistas, esportistas, intelectuais”. “Há
empresários dos meios de comunicação?”, quis saber Charleaux. “Eu não posso te
falar”, respondeu o repórter, “senão, você vai começar a me perguntar por
nomes. Então, prefiro não dizer. Agora, numa lista de quase nove mil clientes,
você pode imaginar que uma parte considerável da elite brasileira esteja nela.”
“E é difícil imaginar que entre uma parte considerável da elite brasileira não
haja empresários de meios de comunicação”, concluiu Charleaux.
[A
entrevista foi divulgada no dia seguinte ao da publicação de um artigo no qual a diretora adjunta do
ICIJ, Marina Walker Guevara, anunciou que a entidade passaria a trabalhar
também com o jornal O Globo nessa investigação, o que provocou
comentários irônicos como o do jornalista Rodrigo Vianna (ver aqui), tendo em vista as conhecidas
denúncias de sonegação contra as Organizações Globo.]
Em sua coluna de 1/3, a ombusdman da Folha
de S.Paulo ironizou a
“teoria conspiratória” que acusa o silêncio da imprensa brasileira sobre o caso
como forma de proteger interesses “de políticos ou poderosos”, sem mencionar as
empresas de comunicação. Segundo ela, “a realidade é mais prosaica: os jornais
levaram um furo na testa”. De fato: mas, mesmo diante da dificuldade de acesso
aos dados, até o momento nas mãos de apenas um jornalista, não seria óbvio que
a simples existência de um escândalo dessas proporções deveria ser uma notícia
a ser escancarada?
“Obsessões
oligárquicas”
Já o
economista Luiz Gonzaga Belluzzo faz outro tipo de ironia em artigo na CartaCapital,
publicado em 23/2 e modificado pela última vez em 2/3:
“Não
creio, sinceramente, que os senhores da mídia nativa tenham sucumbido às mesmas
tentações que levaram o grupo do jornal argentino Clarín, a enfiar a mão
na cumbuca, engrossando o ervanário do HSBC. Prefiro entender o silêncio
midiático como uma manifestação das muitas obsessões oligárquicas que assolam
os senhores de Pindorama: nas sinapses dos patrícios da Pátria, sobrevive a
hierarquia ‘natural’ que organiza a sociedade brasileira desde os tempos da
escravidão. Nem mesmo os corruptos e a corrupção conseguem escapar da fúria
classificatória e classista”.
É o
que nos permite entender a pergunta do presidente do Coaf, em reportagem na mesma revista (3/3): “Você
gostaria de ver seu nome no jornal se um funcionário do seu banco conseguisse
os dados de correntistas e você fosse um deles?”. Pois essa pergunta – “e se
fosse com você?” – não é feita quando suspeitos pés de chinelo são fotografados
em delegacias.
(Na
mesma reportagem, o presidente do Coaf insiste em que “é comum imaginar que ‘ter conta fora é coisa de bandido‘,
mas que isso não é necessariamente verdade”. Pois é: não necessariamente.)
Belluzzo conclui seu artigo
lembrando do “fiasco do Fisco” no caso Banestado – o banco que facilitou a
evasão de divisas do Brasil para paraísos fiscais entre 1996 e 2002, e virou
objeto de CPI no ano seguinte –, e que sintetiza como as instituições se
articulam para proteger os interesses privilegiados:
“A investigação iniciada pelo
procurador federal Celso Três naufragou no ‘Acordão’ costurado na CPI do
Banestado e vazou para os subterrâneos, filtrada entre as decisões e acórdãos
do ‘novo’ Judiciário brasileiro. Os nomes dos transgressores estavam gravados
no então famoso ‘disco rígido’, cujo acesso foi bloqueado pelo Supremo Tribunal
Federal”.
Os
crimes do capital
E aqui entram as questões
mais gerais a respeito das concepções sobre o funcionamento da sociedade, a
partir do qual o jornalismo estabelecerá sua pauta. No Facebook, ao comentar a
entrevista com Fernando Rodrigues, João Paulo Charleaux afirmou que o repórter
estava certo: precisava “separar o joio do trigo”, uma vez que “ter dinheiro
fora não é crime. Ser rico, também não é”.
Certamente,
ser rico não é crime, sobretudo quando internalizamos as regras do jogo
capitalista, que nos leva a ver como natural algo que é aberrante. Pois, se
indagarmos a origem histórica dessa riqueza, talvez nos deparemos com uma
monstruosidade. Exemplo disso é a própria constituição do HSBC, que remete à
Guerra do Ópio deflagrada pela Inglaterra contra a China em meados do século
19. O professor Vladimir Safatle trata do tema em artigo na CartaCapital (15/2). Classifica a história do HSBC
como “o exemplo mais bem acabado de como o desenvolvimento do capitalismo
financeiro e a cumplicidade com a alta criminalidade andam de mãos dadas”. E
aponta a relação entre a vida cotidiana e o sistema, num exercício para
“qualquer interessado em juntar os pontos”:
“Você
poderia colocar seus filhos em boas escolas públicas e ter um bom sistema de
saúde público, o que o levaria a economizar parte de seus rendimentos, se
especuladores e rentistas não tivessem a segurança de que bancos como o HSBC
irão auxiliá-los, com toda a sua expertise,
na evasão de divisas e na fraude fiscal. Traficantes de armas e drogas não
teriam tanto poder se não existissem bancos que, placidamente, oferecem seus
serviços de lavagem de dinheiro com discrição e eficiência. Se assim for, por
que chamar de ‘bancos’ o que se parece mais com instituições criminosas
institucionalizadas de longa data?”
Por
isso será sempre atual a pergunta de Brecht, em sua famosa Ópera
dos Três Vinténs: “O que é roubar um banco, comparado a fundar
um?”.
A
alma do negócio
Ainda
em fevereiro, também na CartaCapital (12/2, ver aqui), o editor de economia Carlos
Drummond mostrava que o caso HSBC não era uma exceção. Semanas depois, naFolha de S.Paulo(1/3), a
repórter Deborah Berlinck (ver aqui) daria uma pista de como funciona o
esquema de assédio aos milionários brasileiros “interessados em tirar parte da
fortuna do Brasil” – o que, por tabela, descartaria a existência de algum “José
da Silva”. No mesmo dia, O Estado de S.Paulo recordava as denúncias do livro A
Suíça lava mais branco, publicado há 25 anos, em entrevista com seu autor, Jean Ziegler.
Finalmente, no domingo seguinte (8/3), deu na primeira página a chamada para
uma entrevista com Hervé Falciani, o
ex-funcionário do HSBC responsável pelos vazamentos, que apontava o Brasil como
alvo principal do esquema e perguntava:
“Por que o Brasil abre
investigações só sobre os clientes, no momento em que está claro há muitos anos
que são os bancos que precisam ser investigados? Quanto tempo será
necessário para que a decisão de investigar os bancos seja tomada? Quanto tempo
será necessário para ir além dos sintomas, os clientes, e chegar às causas da
doença, que são os bancos?”
Faz sentido: se não houvesse
a estrutura, os clientes – esses que, no Brasil, ainda são uma incógnita – não
poderiam se beneficiar dela. Desvendar esse segredo é destruir a alma do
negócio.
Será possível?
Sylvia Debossan Moretzsohn - jornalista,
professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos
motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo
e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007).
Fonte: site Observatório da Imprensa