Quando a palavra do ano acerta na cabeça
Apodrecimento
cerebral soa como crítica e autocrítica do Oxford.
A
eleição de palavras do ano é uma jovem tradição midiática da língua inglesa
que, de algum tempo para cá, o avanço da rede-socialização do mundo colonizou e
esvaziou de relevância.
O cérebro da coisa, que nunca chegou a ser portentoso,
apodreceu.
Isso
torna notável a escolha de 2024 do dicionário Oxford: "brain rot"
(apodrecimento cerebral) parece a "visita da saúde" que precede a
morte de desenganados.
Soa como crítica e autocrítica ao registrar que essa
expressão do século 19 —cunhada por Henry David Thoreau em seu clássico
"Walden"— ganhou este ano fôlego renovado.
Segundo
medição do Oxford, a frequência de seu uso cresceu 250%, puxada pelo TikTok.
"Brain rot" se refere hoje à transformação em papinha dos miolos de
quem (e quem não?) se expõe a doses excessivas de conteúdo digital de baixa
qualidade, sobretudo nas redes sociais.
Vale
comparar com as escolhas dos últimos dois anos: fúteis e esquecíveis,
"rizz" (2023, gíria que quer dizer carisma) e "goblin mode"
(2022, literalmente "modo duende", a disposição de se lixar para
expectativas sociais) eram sintomas de apodrecimento cerebral. Agora vem o
diagnóstico.
A
palavra de 2024 parece mais um soluço do que uma reviravolta.
O roteiro em que
as redes sociais têm a palavra final na comunicação pública não deve mudar.
Escolhas politicamente relevantes do Oxford como as de 2007 ("pegada de
carbono"), 2016 ("pós-verdade") e 2019 ("emergência
climática") prometem ser cada vez mais raras.
Basta
ver a palavra eleita este ano por um concorrente de peso, o dicionário digital
Dictionary.com: "demure", adjetivo velho de séculos que significa
recatado, discreto.
Uma escolha que seria incompreensível se não fosse a
história de como a palavra viralizou.
Entre
janeiro e agosto, a busca por "demure" no Dictionary.com disparou
1.200%. Motivo: uma influencer de beleza –do TikTok, claro– chamada Jools
Lebron adotou-a como bordão ao dar dicas de maquiagem para ambientes de
trabalho.
Fascinante, não.
Se pensarmos bem, nada muito diferente do que
ocorre no Brasil quando um incidente banal entre passageiras de um avião se transforma na questão mais
mobilizadora do debate público —como se andassem em falta temas sérios do tipo
Congresso chantagista, mercado financeiro reacionário e golpistas em liberdade.
Apodrecimento cerebral, pois é.
A tradição de eleger palavras do ano nasceu nos
meios linguísticos —uma sociedade de estudos da então Alemanha Ocidental detém
o título oficial de lançadora da moda, em 1971—, mas a princípio se destinava a
mapear a emergência de vocábulos recém-criados ou de uso até então restrito.
Foi só no início deste século que a palavra do ano
passou a ser incorporada, sobretudo na língua inglesa, ao arsenal pop com que a
imprensa faz o balanço dos 365 dias anteriores, ao lado de retrospectivas,
listas de mortos ilustres, eleições de livros e filmes do ano etc.
Em tal contexto, a novidade da palavra importa
menos do que sua capacidade de traduzir um certo espírito do tempo.
Quando tudo
o que resta é registrar o que viralizou, a mediação dos dicionários tende a se
tornar obsoleta.
SERGIO RODRIGUES - escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura”
e “Viva a Língua Brasileira”.