Interior da Livraria Cultura, que entrou em recuperação
judicial —no pedido à Justiça,
a rede afirma acumular prejuízos nos últimos quatro
anos, ter custos que só crescem e menores vendas
Em uma economia de livre mercado, a
intervenção do Estado na formação de preços de qualquer produto deve ser
evitada ao máximo e aplicada apenas em áreas críticas para o bem-estar geral.
Só isso já deveria ser motivo para descarte imediato de qualquer ideia delimitação estatal sobre os descontos nos preços dos livros, como
propõem os defensores da política do preço fixo.
Mas, como se isso não bastasse, os malefícios da regulamentação proposta, ainda
que limitada ao primeiro ano de veiculação do livro, superam com folga seus
benefícios.
Ao proteger o mercado livreiro da concorrência agressiva de grandes varejistas
e seus descontos, o preço fixo pune o leitor de best-sellers.
São esses livros, preferidos pela maioria dos leitores com menor poder
aquisitivo e acesso limitado à educação, que terão seus descontos proibidos e
sofrerão um grande aumento de preços. Ou seja, para evitar a concorrência
agressiva e proteger a bibliodiversidade, pune-se o leitor popular. A
bibliodiversidade tem de ser protegida, é claro, mas não é o leitor de Paulo
Coelho quem tem que pagar a conta para que o leitor de Dostoiévski encontre seu
livro na simpática livraria do bairro. Sem meias palavras, qualquer política de
preço fixo é elitista.
Por trás da proposta de regulamentação, encontra-se ainda uma batalha velada
contra o crescimento da Amazon. Embora a empresa, até agora, só tenha
contribuído para melhorar a eficiência da indústria de livros no Brasil, é
inegável sua tendência a se tornar um monopólio e uma ameaça ao mercado
editorial.
No entanto, quem acredita que o preço fixo seria empecilho para Jeff Bezos se
esquece de que a Amazon não é competitiva só por causa dos descontos, mas
principalmente por oferecer serviço, eficiência e produtividade
extraordinários.
Uma prova disso é que na Alemanha, onde existe a regulamentação do preço do
livro, a Amazon apresenta uma performance invejada. Ou seja, o preço fixo não
vai evitar o avanço da gigante de Seattle.
Além disso, seria mais inteligente manter um ambiente competitivo incentivando
as empresas menos produtivas a se tornarem mais eficientes, e não criando
barreiras para as empresas com maior produtividade e capacidade de
concorrência.
Finalmente, antes de buscar regulamentação estatal, editores e livreiros
deveriam encontrar soluções entre eles ou mesmo em suas empresas. Por exemplo,
em vez de se defender o preço fixo, por que não aplicar o desconto fixo de
atacado?
Explico: a esmagadora maioria das editoras dá descontos menores sobre o preço
sugerido quando vendem para as livrarias independentes. Às vezes, nem querem
vender. Não seria mais fácil então proteger a bibliodiversidade com condições
comerciais iguais para todo o varejo, independente do volume de compras,
valorizando as pequenas livrarias? Também não seria mais inteligente pressionar
o governo para investir em bibliotecas e comprar mais livros em vez de se lutar
pela lei do preço fixo? Ou então desenvolver propostas como o fim do IPTU para
livrarias ou o abatimento de compras de livros no IRPF?
A bibliodiversidade tem de ser protegida, mas o preço fixo não é a única
solução. É uma regulamentação com efeitos colaterais graves que traz malefícios
aos leitores.
Infelizmente, hoje, sua defesa se tornou uma obsessão tão grande que impede a
indústria editorial de enxergar e resolver seu verdadeiro desafio: a baixíssima eficiência e produtividade.
Carlo Carrenho - economista formado pela Universidade de São Paulo,
consultor editorial e fundador do PublishNews (www.publishnews.com.br), portal de
notícias do mercado do livro
B) Sim| Livros, você ainda vai ter um!
Basta
surgir algo "moderno" que os mais afoitos já decidem que tudo que
existe se tornou obsoleto. Lembro quando surgiu a fita VHS. Quantos
"especialistas" decretaram o fim do cinema! Quem sairá de casa para
ir ao cinema se pode assistir ao filme que quiser, na hora que quiser, na sua
casa? As fitas de vídeo provaram-se frágeis e sumiram, as videolocadoras idem.
Os cinemas seguem cheios.
No último dia 14, o colunista Hélio Schwartsman decretou nesta Folha que as livrarias
são obsoletas pois ele pode comprar o livro que quiser na Amazon. Que propor
limite ao desconto de preços de livros novos seria defender algo destinado a
acabar. Melhor que de outro lado, na mesma página e poucos dias antes, Ruy Castro escreve na outra direção. Mas
gostaria de falar de dois aspectos: o cultural e o econômico.
Existe, como no caso de Schwartsman, uma facilidade em considerar qualquer tipo
de intervenção do Estado numa atividade econômica como protecionismo à
incompetência. Não é o caso. Nos Estados Unidos, paraíso do liberalismo,
existem órgãos públicos dedicados a evitar monopólios, dumping, trustes e outras
distorções do capitalismo.
Por que a Amazon vende livros tão baratos? É mais competente? Sim e não. Apenas
que ela não tem este como negócio principal. A venda de livros por valores
excessivamente baixos serve para atrair clientes de poder aquisitivo para seu
sítio de vendas e, a partir desse momento, tê-los submetidos a estímulos de
compra dos milhares de produtos vendidos pela empresa --onde ela realmente
lucra. A venda de livros não é relevante como negócio.
No primeiro semestre do curso de economia, aprendemos sobre o clássico caso da
empresa grande e monopolista que, ao ver surgir uma pequena concorrente, coloca
seus produtos à venda por preço abaixo de seu custo. Por ter capital, pode
suportar o prejuízo por algum tempo. Seu concorrente, menor, não. Com isso,
este sai do mercado. O grande volta a praticar seu preço livremente.
Temos algo semelhante no mercado de livros. Estabelecer um limite ao desconto
do preço de livros novos não é protecionismo e defesa da incompetência. É
proteção ao capitalismo. Que é, antes de tudo, o sistema econômico da
concorrência. Cabe ao Estado intervir quando forças muito grandes ameaçam o
equilíbrio do mercado.
Por décadas, nos EUA, canais de TV aberta não podiam produzir conteúdo de
ficção. Tinham que adquirir. Por quê? Para garantir que muitas empresas
pudessem participar do mercado. Caso os canais produzissem, teria surgido um
oligopólio. O livre mercado não é a liberdade para um ou dois agentes
dominarem.
Mas temos ainda o aspecto cultural. A compra no universo digital não é a mesma
experiência da compra física no caso de bens culturais. Quando você entra num
sítio, busca um título específico e recebe publicidade do que esta empresa
imagina que você possa se interessar usando seus incríveis algoritmos.
Quando você vai a uma livraria em busca de um livro, tem a oportunidade de ver
centenas de outros, dos quais, eventualmente, nunca ouviu falar. Mas que, pela
capa, pela sinopse, pela orelha, por ter folheado, chamam sua atenção e você
descobre que não pode sair da loja sem ele!
Impor algum limite aos descontos de livros em lançamento impede a concorrência
predatória. Livros com mais tempo no mercado podem estar com descontos livres.
Esses descontos exagerados agora parecem muito bons, mas significarão o fim das
livrarias --e quem garante que no futuro, sem concorrência, os descontos
continuarão? Livrarias são catedrais da civilização! Temos que garantir sua
existência.
André
Sturm - secretário municipal da Cultura
de São Paulo desde 2017; cineasta e ex-diretor-geral do MIS (Museu da Imagem e
do Som)
Fonte:
coluna Tendência e Debates / jornal FSP