'Coloquei dois stents no
coração: um para cada chefe'
Desde que publiquei, na última
semana, a coluna "Os escravos de luxo da Faria Lima",
recebi mais de 600 mensagens, comentários e relatos via Instagram, Twitter,
WhatsApp e email.
Não só de publicitários mas de
profissionais de diversas áreas. Sentindo que essas pessoas querem ser ouvidas,
resolvi ceder o espaço desta coluna para algumas delas.
Faço um recorte livre dos
relatos e não cito nomes porque não quero focar casos específicos, apenas
amplificar um coro comum a milhares de pessoas.
< Meu filho nasceu. Um dia
depois, estava no quarto da maternidade com soro no braço e computador no colo
porque houve uma "emergência" que mais ninguém podia resolver.
< Era aniversário do meu filho
e eu precisava deixar o bolo na escola, mas não me deixaram sair do escritório.
< Fui acompanhar meu pai numa
cirurgia e fiquei gerando contratos na sala de espera.
< Uma diretora sugeriu que
minha mulher mudasse a data do parto para poder me passar uma campanha.
< Fui chorar no banheiro. Meu
chefe bateu perguntando se eu ia demorar muito.
< A máquina não pode parar.
< Somos um time, não somos? Eu indo para um apartamento longe
e apertado, a dona da empresa indo fazer massagem.
< O motoboy sofreu um acidente, e a primeira pergunta foi:
deu tempo de ele entregar o documento?
< Meu chefe, em São Paulo, dizia que era ruim trabalhar com
carioca porque dava o horário de sair e nós saíamos.
< Em um ano, todos do meu departamento acabaram seus
relacionamentos ou se separaram.
< A mãe dele faleceu, ela morava no Sul. Ele não foi liberado
para ir ao enterro.
< Estou com um braço quebrado e, mesmo com atestado, tenho
que trabalhar.
< Um amigo quase ficou cego devido à carga de horas em mesa
de edição de vídeo e teve que se afastar para sempre.
< Lembro da época que eu não tinha tempo de fazer cocô.
< Com dois meses de licença maternidade, me pediram para
voltar. Me recusei. Quando voltei, depois de quatro meses, me demitiram.
< Fui promovido a chefe de mim mesmo para não ter direito a
hora extra.
< As mesmas multinacionais que tiram o sangue dos
funcionários no Brasil não fazem o mesmo aqui na Europa.
< Precisa se tratar? Então tá demitida, agora pode se cuidar.
< Sou freelancer e semana passada pedi dinheiro aqui no
Twitter porque acabou meu gás, minha gata adoeceu e só me restou chorar.
< Em 2022, o cara se jogou da sacada do escritório de
advocacia.
< Foi a época que mais entornei cachaça. < Uma insônia
crônica aos domingos, véspera do flagelo semanal.
< Voltando de uma jornada direta de dois dias sem dormir
acabei capotando o carro.
< Eu era uma secretária executiva que nem sequer podia fazer
xixi sem o celular.
< Tive chefe que quebrou telefone no soco do meu lado.
< Os colegas me contaram que toda assessora nova ia para um
bolão. Apostavam quanto tempo duraria. A média era um mês. O assédio era
diário.
< Eu estava passando mal. Meu chefe parou o carro. Vomitei.
Seguimos para o evento.
< The show must go on.
< Trabalhei como manicure durante oito anos em um salão
frequentado por milionários. Depois de dois anos, tive carteira assinada de
forma fictícia.
< Meu chefe me mandou um email perguntando se eu precisava
mesmo ir na cremação da minha amiga.
< Dormi no chão enquanto esperava o vídeo exportar e ouvi meu
chefe dizendo que eu precisava vestir a camisa da empresa.
< Sou terapeuta e vejo histórias como essas quase todos os
dias.
< Coloquei dois stents no coração: um para cada chefe.
< Dei adeus aos capatazes.
< Até não ter mais sangue e caírem todos doentes.
GIOVANA MADALOSSO - escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia
para as Escritoras.