Dostoiévski revela como nenhum outro escritor o
conflito entre a fé e a razão
'Os
Irmãos Karamázov' compõe uma caricatura do homem moderno, que age em desarmonia
com sua consciência
A leitura de Dostoiévski está entre as decisões
mais acertadas que tomei nos últimos meses, enquanto aqui na Irlanda entrava-se e saía-se de mais um
lockdown. Aliás, faz tanto tempo que estou dentro de casa que nem
sequer tenho ideia de que permanecemos ou não em lockdown.
Do que, pensando bem, já não faz muita diferença.
Gosto de trabalhar em casa, ciente de estar fazendo o possível para preservar a
saúde da minha família.
Neste ano, eu não viajei para o Brasil. Não visitei
os meus amigos em São Paulo nem reencontrei os meus pais no Recife.
Entretanto,
de dezembro para cá, tenho recebido várias fotos de conhecidos na praia,
abraçando-se durante as festas de final de ano; desmascarados, como se fossem imunes
ao vírus e incapazes de expressar qualquer solidariedade aos médicos,
enfermeiros e parentes dos mais de 200 mil mortos que acumulamos no Brasil desde o início da
pandemia.
A mim não cabe julgar os outros.
Afinal, eu
também vivo as minhas próprias contradições, mas acho necessário entender o
porquê de agirmos em desarmonia com as nossas consciências.
Sobre esse tema,
acredito que nenhum outro autor —nem mesmo Nietzsche ou Freud— foi tão perspicaz como Dostoiévski. Nenhum outro livro é tão preciso no seu diagnóstico
do homem moderno como “Os Irmãos Karamázov” (1880).
Escrito
nos últimos anos de Dostoiévski, o romance trata do assassinato do personagem
Fiódor Pávlovitch, por um dos seus quatro filhos: Dmítri, o militar; Ivan, o
intelectual; Aliocha, o seminarista, e o bastardo Smierdiakóv, membro da
criadagem da casa.
Aristocrata
arruinado, vivendo de golpes e provocações, Pávlovitch tem com os filhos uma
paradoxal relação de descaso e dependência.
Desse seu doentio comportamento,
surge a desavença com Dmítri, que o acusa de usurpar-lhe parte da herança
materna e de competir pelas atenções da sua amante, tornando insuportável o
ambiente familiar, de modo que todos passam a desejar a morte do velho.
É
desse enredo que Dostoiévski examina as consequências do
conflito entre a fé e a razão na formação do sujeito moderno —conflito esse
representado pela tendência de todo homem em achar que haveria se livrado de
determinadas crenças quando, em verdade, elas ainda teimam em informar boa
parte das suas ações.
Durante
todo o livro, um dos filhos de Fiódor Pávlovitch, Ivan Karamázov, não para de
se questionar sobre a existência de Deus, da natureza da virtude e do agir
moral.
Se Deus não existe, portanto, tudo está permitido, mesmo o desejo pela
morte do pai.
Logo, não temos que nos preocupar nem com sentimentos de culpa e,
menos ainda, com a ideia de responsabilidade universal.
Será mesmo?
Há
quem diga que esse romance seja a resposta do autor à tese de Ivan, do qual
ficamos sabendo possuir as seguintes concepções:
“Destruindo-se
nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor
como também toda e qualquer força para que continue no mundo.
E mais: então não
haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia [...] para
cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus
nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente
convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando
até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como
a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para sua situação”.
O tipo de ser humano, preconizado no argumento de Ivan, há de
comportar-se como um deus, desconsiderando, quando do seu interesse, todos os
tradicionais obstáculos morais que limitam a sua conduta.
Afinal, assevera o
demônio, expressão do torturado inconsciente de Ivan: “Ao novo homem, ainda que
seja a um só no mundo inteiro, será permitido tornar-se homem-deus [...].
Para
um deus não existe lei!”.
Ninguém segura a mão de ninguém ou, como vem a ser o nosso caso,
podemos educadamente fingir solidariedade, conquanto que a dissimulação assista
aos nossos próprios interesses.
Todavia, ressalvo que permanecemos em larga
medida karamazovianos:
“Um Karamázov é justamente essa
natureza de duas faces, de dois abismos, que, diante da mais descomedida
necessidade de farrear, pode se deter se algo oriundo da outra face o
impressiona”.
É justamente em decorrência dessa dupla natureza que Ivan entra
em crise a partir do momento em que fica sabendo da morte do pai.
Teria ele
alguma culpa pelo assassinato do velho?
De acordo com a sua própria teoria,
Ivan deveria permanecer tranquilo, mesmo porque ele estava fora da cidade na
noite da tragédia.
Só que ele viajou ciente do risco que a sua ausência
representava para a vida do pai.
Estivesse em casa, talvez o crime não houvesse ocorrido.
Estivesse em casa, talvez o seu irmão Dmítri não fosse equivocadamente
condenado pelo parricídio. Talvez, quem sabe, a reputação de todos estivesse a
salvo.
Provando, por assim dizer, que apesar de muito desejar que eles
se matassem —como duas serpentes que morrem entrelaçadas— mesmo assim, Ivan
ainda se importava com a família e sentia-se responsável por todos.
No texto, à medida que a dúvida se assoma de Ivan,
levando-o à beira da loucura, aprendemos uma importante lição: a de que,
talvez, sejamos tão veementes nas nossas convicções, não porque acreditamos nas
nossas próprias certezas, mas, precisamente, por suspeitarmos, mesmo
inconscientemente, das nossas próprias intenções.
Assim, reflete Aliocha sobre
a perturbação do irmão:
"Os tormentos de uma decisão altiva, a
consciência profunda! Deus, em quem ele não acreditava, e Sua verdade lhe
venciam o coração, que ainda se negava a subordinar-se”.
Ao nos aproximarmos da conclusão do romance,
descobrimos que pouco importa saber quem terá sido o verdadeiro assassino de
Fiódor Pávlovitch. A verdade é que todos os personagens da trama colaboraram,
de uma forma ou de outra, para que tal acontecesse.
A culpa é universal; a
responsabilidade, também.
Volto, portanto, à pandemia e à conduta irresponsável de tantas pessoas,
célebres e anônimas, durante as festas de final de ano, como se, ao caírem na
farra, estivessem antecipando a chegada do homem-deus fantasiado por Ivan.
Tenho para mim que esse tipo de comportamento
possui as suas raízes na crise da modernidade, no lento desmoronar das instituições
que acreditávamos ser as tradicionais guardiãs da moral, como a família, a
religião e o Estado.
Hipótese suscitada pelo destino dos personagens de
Dostoiévski, abordada por Nietzsche em alguns dos seus escritos sobre
a morte de Deus, nos quais ele lança o alerta sobre a
imprevisibilidade do que está por vir agora que já não temos mais noção do que
devemos ser e de como devemos nos comportar:
“Deus está morto! Deus continua morto! E nós o
matamos! [...] Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou
ainda aos ouvidos dos homens.
O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das
estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo
para serem vistos e ouvidos.
Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais
longínqua constelação — e no entanto eles o cometeram!”.
No final das contas, Aliocha estava coberto de
razão ao diagnosticar o estado de espírito de Ivan.
Nós, de natureza dupla e
infalivelmente karamazoviana, dizemos tolices e agimos irresponsavelmente,
apesar da nossa consciência, porque ainda não fomos capazes de recalibrar o
nosso compasso moral agora que Deus está morto, ou seja, agora que a tradição
entrou em pane: momento em que precisamos encontrar coragem para finalmente
assumir, por tudo e por todos, a nossa responsabilidade.
Juliana
de Albuquerque - escritora, doutoranda em filosofia
e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela
Universidade de Tel Aviv.
Fonte:
coluna UOL