Novas geringonças ainda não
conseguem filtrar os sons como nós o fazemos.
Não
faço parte do time que maldiz tecnologia, pelo contrário: tenho convicção de
que uma das maiores conquistas do nosso monte de neurônios corticais é
justamente esse corpo crescente de soluções, métodos, sistemas, objetos e
artifícios de maneira geral que nos permitem resolver problemas mais rápido ou
melhor, e deixam tempo livre para procurar novas atribulações.
Cedi
recentemente à geringonça da vez que vem com uma câmera “inteligente”, com
ângulo de visão amplo e que segue quem fala e se move pela sala, mantendo o
foco da conversa no centro da tela. A visão mais natural do ambiente do outro
lado e a imagem mais estável me seduziram: detesto falar para o nariz dos
outros em close-up e movimentos erráticos na telinha do meu telefone. Meu filho
então levou uma segunda geringonça de natal para meus pais, no Rio, e eu
instalei a minha aqui no outro hemisfério, em Nashville.
Ah,
que diferença faz conversar naturalmente com quem a gente gosta, vendo imagem
limpa, estável e com contexto, acompanhando seus movimentos, ouvindo os
comentários dos outros ao fundo. Um som estranho de algo raspando uma
superfície surgia alto e claro de vez em quando —uma vassoura na cozinha, me
dei conta. A inteligência da máquina filtra alguns sons e amplifica outros,
fazendo o papel do cérebro da máquina do lado de lá, ouvindo o ambiente por
mim. O algoritmo achou que a vassoura era relevante. Mas ainda dava para
ignorar a intrusão.
Até
que o resto da família apareceu para jogar cartas, comigo do outro lado da
tela. Minha família é só normalmente barulhenta, mas tem o hábito que os
fabricantes da geringonça pelo jeito não conhecem de interromper uns aos outros
e falar ao mesmo tempo, o que eu cresci achando perfeitamente normal e animado
—mas só porque o cérebro da gente sabe lidar com o problema. Nos círculos da
neurofisiologia, o nome do problema é “festa coquetel”, mas se o pesquisador
fosse brasileiro, seria “papo de família”: como separar em conversas paralelas
as várias vozes sobrepostas, e escolher uma só para seguir em alto e bom tom?
A
neurociência ainda não tem uma resposta completa, mas tem bons esboços para as
várias partes da solução. Sabemos identificar vozes e separá-las umas das
outras, casá-las com os lábios que se movem, filtrar e ignorar sons que não
interessam, diminuir o volume mental de parte da sala, aumentar o som de quem
fala nesta orelha e não na outra. Qualquer cérebro humano faz sozinho o que a
tecnologia neste caso ainda tenta imitar —exceto a parte de estar em duas casas
ao mesmo tempo.
Suzana Herculano-Houzel - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt
(EUA).
Fonte: coluna jornal FSP